brabo ou bravo?

O marido de uma leitora diz que ela é muito BRABA; ela, no entanto, sempre achou que era BRAVA. O Doutor decide.

Caro mestre: sempre ouvi, na minha família, dizerem “Não fique brava comigo”, “A mãe está muito brava porque nós chegamos tarde em casa”, etc. Casei com um gaúcho e até hoje estranho muito quando ele diz que eu sou muito braba. Afinal, qual é a forma correta: é bravo ou brabo?

Hortênsia S. M São Paulo

Prezada Hortênsia: como a única diferença fonológica entre brabo e bravo é a consoante inicial da última sílaba (/b/ ou /v/), tenho certeza de que nos encontramos diante de variantes de um mesmo vocábulo. Esse espetáculo nós já vimos outras vezes: a alternância entre esses dois fonemas aparece em pares como assobiar e assoviar, bergamota e vergamota, piaba e piava, entre muitos outros; é um processo que já ocorria no Latim Vulgar e se transferiu para nossa língua, sendo ainda muito presente no Norte de Portugal, onde se ouve binho, barrer e bento onde nós diríamos vinho, varrer e vento. Um belo e curioso exemplo tu vais encontrar numa das redondilhas de Camões, em que ele escreve bívora no lugar de víbora.

O primeiro a entrar na língua foi bravo, significando várias coisas: ou “bravio, não-domesticado”, ou “irritado”, ou ainda “valente, corajoso”. A forma brabo era apenas uma variante regional, sem nenhuma diferenciação semântica entre elas. Capistrano de Abreu fala de “índios brabos“; Camões fala de “ventos bravos“; Bernardes, na Nova Floresta, nos dá um “…rangendo os dentes, chamejando pelos olhos e espumando, de bravo“; Francisco Manuel de Melo, nas suas Cartas Familiares, escreve “domar animais bravos, conversar com feras brutas”; o eterno Vieira comparece com um significativo “todos os animais, por bravos e feros que sejam, temerão e tremerão do homem”; finalmente, num toque de delicadeza, Tomás Antônio Gonzaga, na Marília de Dirceu, escreve “Pombinhas mansas,/Bravos leões”. Como podes ver, troca-se um pelo outro.

Ao que parece, no entanto, a língua começou a especializar as duas variantes, isto é, a distinguir aquelas situações em que elas podem ser empregadas livremente, de outras em que só uma das formas é aceitável. Por exemplo, quando se trata de coragem, só admitimos bravo, com o seu respectivo substantivo, bravura; jamais engoliríamos algo como “*os brabos heróis da pátria”. Por outro lado, quando queremos dizer que alguma coisa vai mal, usamos o tradicional “É brabo!”, “[Es]tá brabo!” (onde ninguém sonharia exclamar “*é bravo!”). Para dar a idéia de alguma coisa selvagem, natural, preferimos bravo; Ramalho Ortigão fala da murta, que “exala de noite um perfume bravo e selvagem” — e tu hás de convir que “perfume brabo” é outra coisa, é perfume ruim.

O significado que parecia ser livremente compartilhado por ambas as formas é o de “irritado, furioso”; encontramos na literatura personagens que ficam ora bravos, ora brabos. Na formação de derivados, contudo — ao menos no Rio Grande do Sul — enxergo sinais que prenunciam a adoção exclusiva de brabo para este fim: enquanto escolhemos bravura (e braveza, hoje menos usado) para nos referir ao homem destemido, preferimos brabeza quando falamos do homem ou do animal feroz, furioso. Tenho certeza de que a distinção bravura : brabeza, extremamente funcional, vai contribuir para o surgimento, pouco a pouco, de limites mais claros entre brabo e bravo. Para terminar, alegremo-nos todos com um exemplo do Gregório de Matos, o temível poeta do Brasil-Colônia:

AO CONDE DE ERICEIRA, D. LUIZ DE MENEZES, PEDINDO LOUVORES AO POETA, NÃO LHE ACHANDO ELE PRÉSTIMO ALGUM.

Um soneto começo em vosso GABO;
Contemos esta regra por primeira,
Já lá vão duas, e esta é a terceira,
Já este quartetinho está no CABO.

Na quinta torce agora a porca o RABO:
A sexta vá também desta maneira,
na sétima entro já com grã-canseira,
E saio dos quartetos muito BRABO.

Como podes ver, a rima não deixa dúvidas de que ele também empregava brabo como sinônimo de furioso. Abraço. Prof. Moreno

Depois do Acordo: idéia > ideia