retos e oblíquos

Prezado Doutor: eu gostaria de saber como explicar o significado de oblíquo no estudo dos pronomes oblíquos. Obrigada!

Professora de Português — Taquari (RS)

Minha prezada professora: confesso que eu nunca tinha pensado sobre o assunto; eu me contentava em dizer que os pronomes retos representam o sujeito e os oblíquos representam os objetos — mas não conhecia a razão de usarmos esses dois adjetivos, muito mais familiares à Geometria que à Gramática. Tua pergunta me fez sair no rastro dessa nomenclatura, e agora eu volto para compartilhar contigo e com meus leitores aquilo que eu descobri.

Para entender essa denominação, precisamos voltar um pouco na História, remontando ao Latim, a língua-mãe do Português. Quem teve contato com esse idioma deve, com toda a certeza, guardar alguma lembrança das terminações que indicam os CASOS, um de seus traços mais característicos (e assustadores, para os alunos): enquanto o substantivo de nossa língua ostenta, no final, marcas que especificam o GÊNERO e o NÚMERO (aluno, aluna, alunos, alunas), o substantivo latino traz marcas que identificam a FUNÇÃO SINTÁTICA que ele está desempenhando numa determinada frase. Simplificando — só para fins de explicação; não me venha algum boi-corneta acusar de estar maltratando o Latim — simplificando, repito, digamos que o Português tivesse a forma cantor para sujeito ou vocativo, cantorum para objeto direto, cantori para objeto indireto e cantoro para adjunto adverbial. Ora, estando as funções sintáticas identificadas por essas terminações, a ordem em que as palavras se sucedem não vai interferir na compreensão do conteúdo. Seguindo o nosso exemplo: se eu usar cantorum no início ou no fim, antes ou depois do verbo, meu leitor saberá que este vocábulo, naquela frase, é um objeto direto.

O mesmo não ocorre no Português — como, aliás, na maioria das línguas modernas. Nossa frase segue o padrão S—V—O (Sujeito-Verbo-Objeto), enquanto o Latim, por causa das terminações de casos, admite qualquer combinação possível (S-O-V, O-S-V, V-S-O, V-O-S). Para avaliar o que isso significa na prática, tomemos, como exemplo, a frase “O professor contratou o cantor”. No Português, qualquer alteração na ordem dos elementos (“O professor o cantor contratou”, “Contratou o professor o cantor”, etc.) vai gerar ambigüidade, sendo necessário, para manter o sentido original, o emprego daquela preposição “postiça” que todos nós conhecemos: “Ao cantor o professor contratou”, “Contratou o professor ao cantor”. No Latim, no entanto, supondo que a frase fosse “O professor contratou o cantorum” (lembro, mais uma vez, que estamos usando um Latim de mentirinha, para tornar mais clara a explicação), a ordem não faria diferença para o leitor: tanto em “O cantorum o professor contratou”, ou em “Contratou o professor o cantorum“, ou até mesmo em “O cantorum contratou o professor”, saberíamos que o sujeito da frase é o professor e o objeto direto é o cantorum. Em outras palavras, a sintaxe da frase transparece na morfologia das palavras.

Foi isso, sem dúvida, que permitiu que os escritores latinos, principalmente na poesia, alterassem a ordem da frase a seu bel-prazer, a fim de alcançar os efeitos sonoros (métrica, cadência, etc.) pretendidos. Essa é a maior dificuldade para quem lê Os Lusíadas, do nosso Camões. Como esta é uma epopéia renascentista, baseada, como tantas outras da mesma época, no modelo épico de Roma — mais precisamente, A Eneida, de Virgílio —, o autor submeteu a sintaxe do Português às inversões que eram corriqueiras no Latim, o que tornou seu texto praticamente incompreensível sem um pesado aparato de notas explicativas. Se alguém achar que exagero, lembro as duas primeiras estrofes do poema:

AS armas e os Barões assinalados

Que da Ocidental praia Lusitana

Por mares nunca de antes navegados

Passaram ainda além da Taprobana,

Em perigos e guerras esforçados

Mais do que prometia a força humana,

E entre gente remota edificaram

Novo Reino, que tanto sublimaram;

E também as memórias gloriosas

Daqueles Reis que foram dilatando

A Fé, o Império, e as terras viciosas

De África e de Ásia andaram devastando,

E aqueles que por obras valerosas

Se vão da lei da Morte libertando,

Cantando ESPALHAREI por toda parte,

Se a tanto me ajudar o engenho e arte.

Note o leitor que os quatorze primeiros versos são apenas o objeto direto do verbo da oração principal — espalharei —, que só vai aparecer no penúltimo verso da segunda oitava! É essa complexidade sintática que afasta nossos alunos do poema do grande gênio da nossa língua; felizmente a sua vasta e maravilhosa poesia lírica constitui, para o jovem, uma estrada mais amena para ingressar na sua obra.

VOLTANDO AO LATIM — Como vimos, os substantivos latinos apresentavam variações na sua terminação que serviam para assinalar as relações que estes termos mantinham com os demais vocábulos das frase, especialmente o verbo. NÃO existe uma equivalência exata entre os CASOS LATINOS e as FUNÇÕES SINTÁTICAS que usamos na análise do Português, mas, para dar uma idéia aproximada, digamos que o nominativo correspondia ao nosso sujeito, o genitivo ao adjunto adnominal, o dativo ao objeto indireto, o acusativo ao objeto direto e o ablativo ao adjunto adverbial.

O nominativo (e, por extensão, o vocativo), que era considerado a forma básica de qualquer substantivo, correspondia a uma linha vertical, perpendicular ao plano. Os demais casos era vistos como progressivas quedas desta linha em direção ao plano. Os bons professores explicavam isso colocando um lápis na vertical, formando um ângulo de 90° com a mesa: esse é o nominativo. Inclinando o lápis 18°, temos o genitivo; mais outro tanto, temos o dativo; mais uma vez, e temos o acusativo; por fim, o ablativo. Partindo, portanto, da posição considerada “normal”, cada caso representava uma queda dessa linha — e por isso a gramática latina escolheu o termo casus, que vem de cadere (“cair”). A enumeração das várias formas de um vocábulo, em todos os seus casos, era chamada de declinatio (“declinação”), que os latinos foram buscar nos gramáticos gregos, que usavam, para descrever o mesmo fenômeno, o termo klinein (“inclinar-se”). Tudo, portanto, joga com essa diferença entre o lápis ereto e o lápis progressivamente inclinado: o nominativo era o caso RETO, e todos os demais eram os casos OBLÍQUOS.

Embora a estrutura de nosso idioma seja diferente do Latim, os primeiras gramáticas do Português mantiveram essa denominação de casos, especialmente com relação aos pronomes. Por isso falamos, até hoje, em pronomes pessoais retos e oblíquos, quando muito melhor seria chamá-los de pronomes pessoais SUJEITO (o nominativo) e NÃO-SUJEITO (os demais casos). Isso ajudaria muito o nosso aluno a compreender por que a 1ª pessoa do singular, por exemplo, tem três formas — eu, me e mim — e por que devemos escolher a forma adequada para representar determinada função sintática. Abraço. Prof. Moreno

Depois  do Acordo: ambigüidade > ambiguidade

epopéia > epopeia

idéia > ideia