Mário Quintana – com acento

Foi só entrarmos no ano do centenário do Quintana e comecei a receber consultas sobre a maneira mais adequada de grafar seu prenome: devemos escrever Mario, como ele sempre assinou, ou Mário, acentuado, como manda a regra? Eu não hesito em escolher a segunda hipótese: é Mário, rimando fônica e graficamente com o inseparável armário. Sei que muitos defendem exatamente o oposto, baseados principalmente na idéia, ainda muito difundida, de que o nome próprio não está submetido às mesmas regras de uma palavra comum, mas obedece a simples preferências individuais. Na sua grafia, como no jogo do bicho, valeria o que está escrito — seja no registro do cartório, na certidão de batismo ou na própria assinatura do indivíduo. Desculpem, mas nas linhas que seguem eu vou explicar que não é bem assim que a coisa funciona.

Em primeiro lugar, lembro que a norma ortográfica estabelecida pelos sucessivos Acordos Ortográficos sempre valeram para todos os vocábulos de nosso idioma, sejam próprios ou comuns. Os meus leitores mais experientes (leia-se “mais velhos do que eu”) devem lembrar a alteração que houve na grafia de muitos topônimos tradicionais: Triumpho virou Triunfo; Trammandahy virou Tramandaí; a nossa Porto Alegre, coitada, virou Pôrto Alegre, até que, em 1971, com a queda do acento circunflexo diferencial, voltou a ser a Porto Alegre de hoje — e não teve coré-coré. Pois fiquem sabendo que o mesmo aconteceu com os antropônimos: passamos a escrever Inácio, Luís, Teresa, Juçara, Paraguaçu, Manuel, Cláudio e Susana. E os que não foram assim registrados? O que aconteceu com o Ignacio, o Luiz, a Tereza, a Jussara, o Manoel, o Claudio e a Suzana? Por que não tiveram de mudar o seu nome, assim como ocorreu com os nomes geográficos?

A resposta é óbvia: porque nome de pessoa não é algo que possa ser alterado assim, à moda galega. Meu nome faz parte de mim, e é natural que eu seja muito sensível quanto à sua realidade física, seja no som, seja na grafia. Espero que os outros o pronunciem como sempre fizeram meus parentes e amigos; quando alguém muda sua pronúncia, trocando o timbre de uma vogal ou alterando a posição da sílaba tônica, sinto-me no direito de corrigi-lo, mostrando-lhe como devo ser tratado. Na escrita, o conjunto de sinais usados para escrever meu nome torna-se uma espécie de grafismo com o qual me identifico e no qual eu me reconheço; desrespeitá-lo representa, no fundo, desrespeitar minha própria pessoa. Não é por acaso que todo cidadão tem, assegurado por lei, o direito de portar o seu nome na grafia em que foi registrado, se quiser. Quem é Ignacio Baptista de Assumpção pode continuar a sê-lo (apesar da inevitável trabalheira que vai ter para explicar, nos infinitos guichês e repartições desta vida, que não se chama Inácio Batista de Assunção). Os Thiagos têm todo o direito a conservar o “th” do seu nomee não faz diferença se nasceram antes da vigência do Acordo de 1943, ou se nasceram na semana passada e foram assim batizados porque este era o nome do avô, ou simplesmente porque os pais acharam que, com esse agazinho, o nome ficava com mais estilo. O direito é o mesmo.

Tudo isso perde o sentido, no entanto, quando um autor deixa este mundo ingrato e passa a integrar a reduzida galeria dos personagens imortais de nossa história cultural. Em pouquíssimo tempo a manutenção da grafia original de seu nome passa a ser impossível e contraproducente, pois as gerações que se sucedem, no seu infindável cortejo, não têm como guardar na memória esses usos peculiares de letras e de acentos, resquícios de antigos sistemas ortográficos que desapareceram. Aqui deverá prevalecer sempre a forma atual: Luís de Camões (e não *Luiz); Eça de Queirós (e não *Queiroz); Casimiro de Abreu (e não *Casemiro); Rui Barbosa (e não *Ruy); Euclides da Cunha (e não *Euclydes). Mário Quintana tinha o prenome inacentuado porque esse era o uso de seu tempo; hoje, contudo (na verdade, desde o Acordo de 1943), ganhou o seu acentinho agudo. As pessoas mais próximas de Quintana certamente vão estranhar a nova forma; talvez até se recusem a empregá-la, pois vão senti-la como um traço falso na lembrança que conservam do poeta. É uma reação compreensível e deve ser respeitada — mas o sistema lingüístico, na sua pressão inexorável pela padronização, já encerrou a questão há muito tempo. Hoje não importa mais saber de que maneira Mário de Sá Carneiro, Mário Palmério, Mário de Andrade ou Mário Quintana assinavam seus nomes, porque agora todos eles são Mários.

 

Depois do Acordo:

idéia > ideia

lingüístico > linguístico