translineação com dígrafos

Caro mestre Moreno: minha pergunta é pontual e fácil de ser respondida, mas como a dúvida surgiu no ambiente de trabalho e as opiniões estão muito divididas, gostaria que me esclarecesse de uma vez por todas. Na partição da palavra CLASSIFICADO, no final da linha, eu posso dividi-la assim:  CLASSI-FICADO?

Para mim, não há problema algum: as duas primeiras sílabas ficam numa linha e as demais na linha seguinte. Vários colegas de trabalho, porém, me disseram que eu estava “assassinando” a língua portuguesa, já que eu deveria ou separar no dígrafo SS (CLAS-SIFICADO), ou deixar as duas últimas sílabas na linha seguinte (CLASSIFI-CADO). Argumentei de todas as formas, desenhei a divisão silábica e demonstrei que a mesma não estava sendo desrespeitada, mas nada os convenceu. Então, caro mestre, quem está com a razão??

Lislaine  – Ribeirão Preto (SP)

Prezada Lislaine, confesso que não entendi o ponto de vista de teus colegas. Parece que eles ouviram o galo cantar mas não sabem muito bem onde… O que não se pode fazer, em Português, é deixar o dígrafo SS na sílaba inicial da linha seguinte, como faz o Espanhol; nós temos de separar um S do outro (não há nenhum razão lógica para isso, mas é assim que ficou estabelecido). Portanto, dependendo do ponto da palavra em que recair o final da linha, poderíamos ter CLAS/SIFICADO, CLASSI/FICADO, CLASSIFI/CADO ou CLASSIFICA/DO – nota que não estou separando todas as sílabas, mas apenas indicando, com o sinal “/”, o final de uma linha e o início da outra. O que estaria completamente errado seria *CLA/SSIFICADO.

O mesmo ocorre com os demais dígrafos separáveis, como o SC e o RR. Se a palavra RENASCIMENTO ficar no final da linha e tiver de ser dividida, dependendo do espaço de que dispusermos nós vamos ter RE/NASCIMENTO, RENAS/CIMENTO, RENASCI/MENTO ou RENASCIMEN/TO.

Agora, vamos convir que tudo isso começa a ser cultura inútil, já que as máquinas de escrever, que alinhavam os espaços por colunas rígidas, na vertical, já podem ser consideradas verdadeiras relíquias; os processadores de texto, com a possibilidade de justificar as linhas, torna raríssima a necessidade de separar as sílabas na margem da direita. Abraço. Prof. Moreno

Na volta do correio:

Prezado Mestre Moreno: obrigada pela rapidez e clareza na resposta; acho que com o seu texto, mais alguns recortes da Folha de São Paulo e do Estadão exemplificando a partição de vários dígrafos, eu consegui convencer os colegas, mas confesso: não foi nada fácil, muitos são teimosos…

Queria apenas lhe dizer que não concordo que tudo isso seja cultura inútil. Acho uma pena as pessoas pararem de escrever à mão; eu sempre faço um rascunho com papel e caneta antes de digitar no computador, justamente para não perder o hábito e começar a esquecer as regras de acentuação e ortografia. Na época em que me preparava para o vestibular ,fiz bons cursos de redação, e hoje sinto um grande dó ao ver crianças e adolescentes escreverem tão mal e terem tanta dificuldade na interpretação de textos. Sem contar que somos pais e mães e iremos ajudar os professores dos nossos filhos desde a alfabetização até a preparação para o temido vestibular, onde a redação ainda tem, e espero que continue a ter, um grande peso na nota. É isso! Mais uma vez obrigada!

Lislaine


Concordo com quase tudo, Lislaine, mas reafirmo que a translineação está se tornando uma cultura para lá de inútil. Trabalho com centenas de adolescentes que se preparam para o vestibular, e podes ter certeza de que nenhum deles vai separar qualquer vocábulo no final da linha se puder evitar. Essa obsessão é característica do Brasil do tempo da datilografia, por uma deformação em nossa cultura: enquanto os falantes do Inglês e de outros idiomas nunca se preocuparam em manter a margem da direita uniforme (basta ver que o Word vem, de fábrica, configurado para alinhar à esquerda), em nosso pobre e inculto país essa mesma margem tornou-se obrigatória e indicadora do grau de habilidade que tinha o datilógrafo. Na nossa mente tupiniquim, o texto datilografado tinha de ser uma imitação do texto impresso, composto em linotipo (máquina que, essa sim, tinha justificação).

Eu sei muito bem o trabalho que dava porque era funcionário de um banco e tinha de escrever num papelzinho à parte a palavra que ia encerrar a linha, a fim de contar os espaços necessários para obter um alinhamento homogêneo; quando vieram as máquinas elétricas de esfera, eu aprendi a empurrar a esfera manualmente para mudar o espaçamento entre os caracteres, obtendo assim uma margem direita perfeita! Tudo isso poderia ter sido evitado se nos tivéssemos  acostumado com o alinhamento à esquerda; como tal não aconteceu, tivemos de esperar anos para que, finalmente, os processadores de texto acabassem com o problema, justificando cada linha automaticamente. Estudar separação de sílabas? É fundamental, porque dela dependem vários princípios de nossa ortografia, entre eles o da acentuação. Estudar a separação de sílabas na translineação? Cultura inútil, como eu disse. O novo Acordo, na sua incomparável vocação para o supérfluo, incluiu uma regra que determina a repetição do hífen de separação quando coincidir com o hífen dos vocábulos compostos ou dos pronomes enclíticos – como diz Umberto Eco, um  belo exemplo da tetrapilectomia, a inútil arte de dividir, em quatro partes, um fio de cabelo ao comprido. Abraço. Prof. Moreno