o ponto-e-vírgula vive!

Na hora do cafezinho, numa das pontas da mesa, brotou uma daquelas bem-humoradas discussões que coroam todo jantar em que bons amigos se reúnem em torno da boa comida. Falavam, não sei por quê, em espécies em extinção; citaram o panda-gigante, a ararinha-azul, o mico-leão-dourado e o ex-cantor Sting. “E o ponto-e-vírgula?”, perguntei, em tom de brincadeira — “Quando vão formar uma ONG para defender este pobre bichinho?”. Para minha surpresa, um dos presentes, grande admirador da belíssima primeira-dama da França, informou que o presidente Sarkozy, faz alguns meses, havia instruído todo o seu ministério a reabilitar o uso deste sinal nos documentos administrativos, tendo fixado, por página, o mínimo de três ponto-e-vírgulas (mas cá para nós, que plural mais “singular”!). Tal medida teria como objetivo combater a tirania da frase curta, curtíssima verdadeira praga que assola o estilo moderno , fazendo voltar os elegantes e articulados períodos que sempre caracterizaram a sintaxe da língua em que brilharam Bossuet, Voltaire e Flaubert.

Embora desconfiado com a veracidade da informação, declarei, na hora, que morria de inveja dos franceses, pois o máximo que nossos políticos sabiam propor, em termos de idioma, eram asneiras como proibir estrangeirismos ou juro que não estou fazendo troça abolir a crase! É claro que, chegando em casa, fui correndo à internet para conferir o ato de Sarcozy e, como eu já suspeitava, era apenas uma brincadeira. Inteligente, sim, mas brincadeira, a começar pela falsa “portaria” governamental, datada de 1/4/2008, ou seja, bem no primeiro de abril, dia internacional dos crédulos e dos tolos… Alguns jornalistas perceberam imediatamente o logro, outros demoraram um pouco mais, mas o que realmente importa os autores conseguiram, com seu trote bem-intencionado, despertar uma ampla discussão sobre a utilidade do ponto-e-vírgula e as perspectivas de sua sobrevivência.

O que realmente me deu inveja, admito, foi ver que lá, entre os franceses, ainda perdura um certo respeito por este sinal, mesmo por aqueles que confessam não usá-lo há muitos anos. O depoimento das novas gerações, infelizmente, deixa entrever que o ponto-e-vírgula vai se tornar cada vez mais raro na França, como já o é na maioria dos países ocidentais, incluindo o nosso a menos que se desenvolva uma campanha permanente para esclarecer os efeitos que ele traz para uma pontuação bem estruturada. O pequeno prestígio de que ele hoje desfruta entre nós como se diz por aqui, ele anda com um “baixíssimo ibope” é devido, imagino, ao velho equívoco teórico, ainda disseminado na maior parte das gramáticas e dos livros escolares, de associar os sinais de pontuação com as pausas que fazemos durante a leitura.

O que vou dizer é óbvio, mas deve ser dito: faz muito tempo que as pausas deixaram de ser o motivo para pontuar um texto. Esse era o modelo antigo, que imperou, absoluto, da Antiguidade Clássica até a Idade Média, quando o Ocidente ainda não havia introjetado o hábito da leitura silenciosa. Até o Renascimento, a maioria dos leitores liam em voz alta; os sinais de pontuação serviam, portanto, para marcar as pausas e as entonações. À medida que a leitura passou a ser silenciosa (e, por esse motivo, muito mais rápida), deixou de ser necessário fazer a marcação das pausas, liberando a pontuação para outra finalidade muito mais importante: facilitar ao leitor o reconhecimento instantâneo da estrutura sintática das frases. Ao pontuarmos um texto, estamos fornecendo indicações que vão permitir a nossos diferentes leitores percorrê-lo sem hesitações ou embaraços.

Apesar do predomínio absoluto da leitura silenciosa, ainda hoje não se consolidou completamente a passagem do antigo sistema de pontuação para o atual, baseado na estrutura sintática. Em 1737, o tratado Bibliotheca Technologica, do erudito inglês Benjamin Martin, tenta ingenuamente fixar a duração dessas pausas: “A pausa da vírgula dura o tempo que você leva para dizer um; a do ponto-e-vírgula dura o tempo de contar até dois; a do dois-pontos, o tempo de contar até três; e a do ponto final, o tempo que você leva para contar até quatro“. Pois não é que, até hoje, nossos melhores dicionários continuam com a mesma lengalenga? O próprio Houaiss, meu preferido, define o ponto-e-vírgula como “sinal de pontuação que indica pausa mais forte que a da vírgula e menos que a do ponto”! Coitadinho! Na divisão das competências, coube-lhe uma função indefinida e subalterna, a meio caminho entre a vírgula e o ponto. Com um valor tão impreciso assim, não espanta que seu emprego tenha se tornado cada vez mais raro.

(Continua)