Guia Prático vol. 4: PONTUAÇÃO

Reproduzo, abaixo, as páginas iniciais do Guia Prático-4, lançado esta semana pela L&PM POCKET:

Falar e escrever

A escrita é muito mais pobre que a fala

A relação entre quem fala e quem ouve é muito mais simples que a relação entre quem escreve e quem lê. Quando falamos, somos mais facilmente entendidos do que quando escrevemos, porque, junto com as palavras pronunciadas, fornecemos também a nosso ouvinte várias indicações de como ele deve processar o que estamos dizendo. A entonação, o ritmo, as pausas que fazemos, além de nossos gestos e de nossas expressões faciais, servem, na verdade, como uma espécie de manual de instruções sobre como esperamos ser compreendidos. Além disso, a presença do ouvinte também contribui em muito para o sucesso de nossa comunicação, pois ele emite sinais de que está acompanhando nosso discurso ou de que algo não está lhe parecendo muito claro, dando-nos, assim, a oportunidade de refazer ou reforçar o que estávamos dizendo.

Na escrita, nada disso existe. O leitor está sozinho diante daquilo que escrevemos. Nosso texto, ao contrário de nossa voz, não vem carregado das ênfases ou das sutilezas de tom que fazem parte da fala. Ele se materializa apenas como letras e sinais que distribuímos organizadamente no branco do papel, na esperança de que o leitor possa compreender o que pensamos ter escrito.

1 – O leitor colabora

É por isso que a leitura jamais será uma atividade passiva, pois precisamos colaborar no esforço de extrair o significado do texto. Para compreender uma frase, colocamos em ação o nosso mecanismo de processamento de linguagem; em geral, escolhemos um dos caminhos a que estamos habituados e vamos percorrê-lo até perceber que não há saída – isto é, até perceber que nossa escolha foi equivocada. Quando (e se) isso chegar a ocorrer, nós – que, como todo leitor, somos solidários com o autor – trataremos de refazer o caminho do ponto em que tinha começado o equívoco. Veja a frase abaixo:

(1) Enquanto ele fotografava o macaco derrubou o tripé com a cauda.

Nossa primeira tendência é considerar “enquanto ele fotografava o macaco” como um segmento unitário:

(2) [Enquanto ele fotografava o macaco] derrubou o tripé com a cauda.

No entanto, ao prosseguir na leitura, percebemos que macaco não é o complemento de fotografar, mas sim o sujeito de derrubou; voltamos atrás e refazemos, então, a leitura, desta vez na forma correta:

(3) [Enquanto ele fotografava] o macaco derrubou o tripé com a cauda.

Todo esse trabalho seria evitado se o autor já tivesse usado uma vírgula para sinalizar a segmentação correta:

(4) Enquanto ele fotografava, o macaco derrubou o tripé com a cauda.

Precisamos admitir que a presença de elementos como macaco e cauda nos permitiria entender a frase mesmo que ela estivesse sem pontuação – ou, o que é ainda pior, mesmo que estivesse com pontuação errada -, mas fica claro que a presença da vírgula no local adequado tornou a leitura muito mais rápida e mais fluida, exigindo menos esforço de processamento. Esta é, como veremos, a única (e preciosa) função dos sinais de pontuação: orientar o leitor para a melhor maneira de percorrer os textos que escrevemos.

Embora sejam poucos os brasileiros que estão preocupados com a pontuação – como você, que lê este livro -, ela exerce uma inegável influência no momento da leitura. As pessoas podem não saber muito bem onde ou por que empregar as vírgulas, mas vão perceber a diferença se o texto estiver (ou não) bem pontuado.

2 – O texto é uma estrada a percorrer

Nada é mais parecido com a pontuação do que o sistema de sinalização de uma estrada. Imagine, caro leitor, que deram a você a incumbência de sinalizar uma estrada novinha em folha, ainda sem uso. Por enquanto, ela é apenas uma extensa faixa de asfalto liso, sem manchas ou buracos, que vai de um ponto a outro do estado; quando for inaugurada, no entanto, deverá estar completa, com as faixas pintadas no seu leito e com todos os sinais e placas necessários espalhados ao longo da via. Então você a percorre várias vezes, nos dois sentidos, estudando-a com cuidado, assinalando em sua planilha todos os pontos que lhe parecem significativos. Você sabe que a tarefa que lhe deram é vital para o motorista que vai passar por ali, pois é através da sinalização que a estrada fala com ele, avisando-o de tudo aquilo que ele precisa saber para fazer uma viagem segura (aliás, este é o principal motivo pelo qual as autoridades de trânsito exigem que o condutor seja alfabetizado: ele precisa ler o que a estrada tem a dizer).

Vamos supor – já que estamos fazendo um exercício de imaginação – que você então apresente a seu supervisor a planilha em que marcou os pontos em que pretende colocar cada sinal de trânsito. “Por que estas quatro placas tão próximas?”, pergunta ele, apontando para determinado trecho. Como você fez um exame minucioso da estrada, pode justificar sua decisão: “Aqui há uma forte curva para a direita, mas eu não notei que o ângulo era tão acentuado até entrar nela; se eu não estivesse rodando devagar, não teria conseguido controlar o carro! Acho que o motorista deve ser avisado bem antes, com tempo suficiente para diminuir a velocidade e se preparar para a manobra. É muito perigosa, e por isso vamos colocar quatro placas indicativas, de 100 em 100 metros, antes daquela que assinala o ponto exato em que a curva inicia”. “E uma só não basta?”. Você é taxativo na resposta: “Não; não podemos correr o risco de que um motorista distraído deixe de receber esta mensagem ou não lhe dê a atenção que ela merece; quem entrar naquela curva na velocidade normal da estrada vai fatalmente rolar barranco abaixo”.

Se você for justificando, uma a uma, as placas que pretende colocar, vai perceber que elas obedecem a uma lógica muito simples: tudo o que não for previsível para o motorista deverá ser assinalado ao longo do trajeto. Você vai avisá-lo que existe, à frente, um estreitamento na faixa da direita, ou uma escola rural (com a natural movimentação de crianças na hora da entrada e da saída), ou um desnível entre a pista e o acostamento, ou um trecho que não oferece visibilidade suficiente para ultrapassagem, etc. Se você for um bom engenheiro de trânsito, vai, inclusive, prever possíveis reações dos condutores.

É por isso que extensos trechos em linha reta, com ampla visibilidade, embora favoreçam uma rodagem extremamente segura, geralmente recebem dois tipos de placas: por um lado, as que lembram a velocidade máxima permitida; por outro, as que aconselham o condutor a descansar no acostamento em caso de sonolência. Antes de liberar a estrada para o público, você pode pedir a dois ou três técnicos amigos que testem a sinalização que você concebeu; é possível que ainda seja necessário acrescentar mais alguma coisa. Por exemplo, você não tinha notado que determinado trecho fica escorregadio em dias de chuva, ou que, durante a semana, há trânsito intenso de caminhões no entroncamento da via principal com um desvio que leva a uma pedreira – e assim por diante. Quanto mais bem sinalizada a estrada, mais segura será a viagem.

Pois o texto, exatamente como a estrada, é uma linha que deve ser percorrida de um ponto a outro. Entre o leitor e o autor existe a mesma combinação tácita que existe entre o motorista e o construtor da estrada: “Vou ler o seu texto, mas, em troca, você não deixará de me avisar de tudo aquilo que eu preciso saber para ter sucesso nesta leitura”. Quanto mais bem pontuada uma frase ou um texto, maiores as chances de que a mensagem seja entendida pelo leitor tal como o autor a idealizou. Aqui entram os sinais de pontuação, os quais, como você já terá percebido, equivalem às placas e aos sinais da rodovia e, como estes, devem ser usados também para assinalar tudo o que for inesperado ou imprevisível na estrutura normal de nossa língua. O princípio básico é cristalino:

FRASE NORMAL NÃO TEM VÍRGULA; FRASE QUE TEM VÍRGULA NÃO É FRASE NORMAL

A pontuação assinala modificações introduzidas nos padrões normais da frase; por causa disso, jamais um sinal de pontuação poderá interromper um vínculo sintático essencial – ou seja, como explicava Celso Pedro Luft, jamais haverá pontuação separando o sujeito do verbo, o verbo de seus complementos, o termo regente do termo regido, o termo modificado do seu modificador.

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4 – O leitor é que importa

Da Grécia antiga até hoje, numa jornada de dois mil e quinhentos anos, o Ocidente veio amadurecendo o sistema de pontuação que utilizamos. Para quê? Para fornecer ao leitor uma orientação segura de como pretendemos que ele interprete o que escrevemos e, ao mesmo tempo, deixar o texto balizado de tal modo que essa leitura seja feita com o menor esforço possível.

Jamais devemos esquecer, portanto, que os sinais que colocamos em nossos textos estão ali para ser vistos pelos olhos do leitor, para avisá-lo de alguma coisa. Se os colocarmos nos lugares adequados, vamos ajudar o destinatário a processar confortavelmente nossa mensagem e a extrair dela o significado que tínhamos em mente ao escrevê-la. É por isso que só pontuam bem aqueles que conseguem se colocar na mente de quem vai lê-los, isto é, aqueles que conseguem ler seu próprio texto com os olhos de outrem para se antecipar a suas possíveis dificuldades e hesitações. Esta é uma habilidade que se adquire com tempo e treinamento; se você ainda não a domina, use o antiquíssimo expediente de recorrer a um amigo, colega ou parente – em suma, um leitor real – que seja paciente e solidário o bastante para examinar o seu texto, mas sincero o suficiente para assinalar os pontos em que encontrou dificuldade.

 

Sumário

Introdução – Falar e escrever

Princípios gerais

A pontuação nos dicionários
A vírgula não existe para marcar pausas
Vírgula com sujeito posposto
Vírgula com sujeito posposto – o retorno.
A pontuação nos escritores
Como posso indicar uma pausa na fala?
Vírgula depois de sujeito oracional
Separar o sujeito do predicado?
Vírgula entre o sujeito e o verbo?
Por que cometem esse erro?
Vírgula antes de “é”

Curtas

Nem tudo a pontuação pode representar
Vírgula entre o sujeito e o verbo
Vírgulas de um convite
Vírgulas e pausas não coincidem.
Vírgula depois do nome de autores
Água também é vida!
A frase de Saramago
Quem ama, educa

Pontuação interna

I. A vírgula

1 – Separando os itens de uma enumeração

Enumerações abertas
A pontuação do etc
Enumeração com vírgula antes do “E”
Enumeração de adjuntos adverbiais
Curtas
Vírgula em nome próprio
Ponto depois do etc.

2 – Separando orações coordenadas

Orações com sujeitos diferentes
O “E” com valor adversativo
Pontuação do POIS
A frase pode começar com E ou MAS?.
Curtas
“E” com valor adversativo.
E sim.
Vírgula estranha antes do “E”
Quando “E” não for conjunção aditiva.

3 – Separando o adjunto adverbial deslocado

Adjunto adverbial curto
Vírgula a ser evitada
Advérbios em -MENTE
Adjunto adverbial no convite de casamento
Desta feita.
Curtas
Ontem à noite
Adjunto adverbial deslocado
Ad referendum: adjunto adverbial deslocado
Vírgula com data

4 – Separando o aposto

Aposto ou vocativo?
Alexandre, o Grande
Aposto entre travessões
Curtas
Diretor em exercício

5 – Separando o vocativo

Vocativo não é sujeito.
Bom dia, Vietnã!
Suje-se gordo!.
Curtas
O vocativo
Cuidado frágil
Vocativo x sujeito
Pontuação com interjeição
Quantas vírgulas?
Muda o sentido

6 – Separando outros elementos intercalados

Vírgula depois de parênteses.
Travessão seguido de vírgula.
Interrogação dentro da intercalação
Curtas
Além disso
Conjunção seguida de expressão intercalada

7 – Indicando a elipse do verbo

Supressão do verbo ser.
Vírgula obrigatória?
Curtas
Vírgula estranha
Falso caso de elipse

8 – Separando as adjetivas explicativas

Aposto e oração explicativa
Aposto restritivo
Ensinando as adjetivas
Orações adjetivas no subjuntivo
Aposto circunstancial
Elementos não restritivos.
Curtas
Adjetiva explicativa reduzida.
Classificação das orações
Adjetiva com pronome pessoal.
Restritivas x explicativas: diferença de significado
Aposto restritivo
Subjuntivo nas restritivas.
Explicativa após pronome pessoal

II. O ponto-e-vírgula

1 – Organizando enumerações complexas
2 – Ligando orações coordenadas assindéticas
3 – Separando orações introduzidas por conjunções pospositivas
Os dois tipos de POIS
Pontuação das adversativas
Pontuação da segunda coordenada
Maiúsculas depois do ponto-e-vírgula
Ponto ou ponto-e-vírgula?

III. O dois-pontos

1 – Introduzindo uma enumeração
2 – Introduzindo uma citação
3 – Assinalando uma relação de causa ou consequência
Dois-pontos e aposto enumerativo.
Dois-pontos com enumeração
Minúscula depois de dois-pontos

IV. O travessão

Travessão simples.
Travessão duplo x parênteses
Travessão duplo x vírgula dupla
O hífen não é travessão
Como digitar um travessão.
Travessão com vírgula?
A ponte Rio–Niterói

Pontuação final

I. O ponto

Ponto final e ponto da abreviatura.
Título deve ser pontuado?

II. O ponto de interrogação

Interrogação indireta
Pergunta retórica

III. O ponto de exclamação

Para distinguir uma frase declarativa de uma exclamação.
Depois de uma interjeição
Para caracterizar chamado ou interpelação.
Em frases imperativas
Pontuação com interjeição
Usar ou não usar o ponto de exclamação.
Pontuação mista

IV. As reticências

Nas enumerações exemplificativas
Para indicar cortes em citações
Espaço antes ou depois das reticências
O professor que odiava reticências

V. Diversos

O ponto fica antes ou depois das aspas?
Ponto dentro e fora das aspas?
E/OU – valor da barra inclinada
Barra inclinada ou travessão?
Sem espaço antes da vírgula
O uso de colchetes
Pontuação no cabeçalho de correspondência.
Pontuação: charadas