Pleonasmo? Tem certeza?

A caça ao pleonasmo parece ter-se tornado um dos esportes mais populares nas redações de jornal e nos consultórios gramaticais. O Doutor adverte: cuidado para não atirar no bicho errado!

 

Um amigo muito próximo vem pedir minha adesão à campanha que promove contra um erro que ele considera intolerável: o emprego do adjetivo municipal ao lado do substantivo prefeitura. “Como é que as pessoas não vêem que isso é supérfluo? Então, queriam alguma prefeitura que não fosse municipal?” — esbraveja ele, ao telefone. Não quero que meu amigo se exalte, pois sei que é hipertenso, mas também não posso deixar que passe vergonha diante dos outros, ao defender uma idéia tão ingênua. Com muito tato, lembro-lhe que um indivíduo isolado jamais vai saber mais do que a comunidade lingüística em que ele vive; a vetusta seqüência prefeitura municipal, portanto, não pode ser equívoco de tantos milhões de pessoas, em tantos séculos de língua portuguesa. Não estaria ele esquecendo, por exemplo, as prefeituras distritais? Ou as prefeituras do câmpus, que existem em quase todas as grandes universidades? “Mas eu vi no Manual, na lista dos pleonasmos!”, arrisca ele, já na defensiva, porque adivinha o que vou dizer. Ele está se referindo a um desses manuais de redação jornalística que infestaram o Brasil na última década, que mereciam figurar entre as dez pragas do Egito, ao lado da peste e dos gafanhotos.

Vou ao famigerado manual que meu amigo mencionou: entre os pleonasmos que devem ser evitados (segundo o raciocínio simplista de quem escreveu o capítulo), encontro agora já, criar novos, elo de ligação (“elo já significa ligação”, explica a sumidade), estrelas do céu, exultar de alegria, habitat natural, pequenos detalhes, permanece ainda, prefeitura municipal, regra geral, recordar o passado (“e alguém poderia recordar o futuro?”), sorriso nos lábios (“e o sorriso seria na testa?”), sua autobiografia, entre tantos outros exemplos igualmente discutíveis. A julgar por essa lista, devemos lamentar que Vieira, Eça, Machado, Camilo e outros gênios da língua não tenham tido acesso a esse manual, porque assim teriam evitado os tais “pleonasmos”:

“Não afirmo que entre as duas fases da existência de Luís Soares não houvesse algum elo de união” (Machado); “se alguma coisa a pode absolver foi a sua perseverança em criar novos estabelecimentos com novos e terríveis esforços” (Eça); “Quando estes, ligando o nome à pessoa, se mostravam contentes da apresentação, não há dúvida que Luís Dutra exultava de felicidade” (Machado); “Mas descendo a pequenos detalhes” (Mário de Sá-Carneiro); “Isto não é regra geral, mas é regra geral que Deus não quer roncadores, e que tem particular cuidado de abater e humilhar aos que muito roncam” (Vieira); “Ensaios inumeráveis como as estrelas do céu” (Eça); “Ela o surpreendeu com os olhos marejados de lágrimas e um sorriso nos lábios” (Camilo); “E tentas, louco, recordar o passado?” (G. Dias); “a matéria da cobiça permanece ainda depois da morte” (Vieira). E assim por diante.

E agora, em quem acreditar? É simples, meu amigo: num dos pratos da balança, ponha os maiores autores de nosso idioma; no outro, sozinho, o intrépido jornalista… Não quero, com isso, dizer que recomendo que se escreva hoje exatamente como nossos autores clássicos faziam, já que os usos da linguagem também estão sujeitos aos ares e às modas do tempo; na verdade, estou apenas lembrando a esses desmemoriados jornalistas de hoje que a língua é muito mais rica do que eles imaginam. Se o autor daquele “manual” tivesse tido a prudência de afirmar que julga desnecessárias tais redundâncias, ou antiquadas, ou inadequadas para os leitores do jornal em que ele trabalha, ainda vá lá nosso estilo nada mais é, afinal, do que a soma das escolhas individuais que fazemos. Agora, condenar definitivamente essas expressões, usando aquela argumentaçãozinha de caracacá, vamos e venhamos!

Na verdade, é difícil dizer quando estamos diante de um pleonasmo condenável (do Grego pleonasmos, “superabundância, excesso”). É comum o falante recorrer voluntariamente a ele quando percebe o enfraquecimento do significado originário do vocábulo, que passa a precisar desse reforço; é o caso, para mim, de ambos os dois, meandros sinuosos e bela caligrafia. No pleonasmo involuntário, dito vicioso, no entanto, há uma repetição tão óbvia de conceitos que não parece obedecer a uma intenção consciente: um plus a mais, democracia popular, recuar para trás, duna de areia, falso pretexto, aparência exterior, hemorragia de sangue, ataque cardíaco bem no coração (costumam ser fulminantes!). Friso, no entanto, que essa é a minha opinião, e deixo a meu leitor decidir onde começa um grupo e termina o outro; nunca vai ser pão, pão; queijo, queijo. O melhor é relaxar um pouco e aproveitar o conceito como um recurso expressivo: “Solteiro feliz é pleonasmo vicioso”; “Ela consultou desculpem o pleonasmo! uma falsa cartomante“; “Bons tempos em que propaganda enganosa não era pleonasmo!”. Por último, a pérola: “Morreu virgem e mártir? Mas isso é um pleonasmo!”.

Depois do Acordo:

  • vêem>veem
  • idéia>ideia
  • lingüística>linguística
  • seqüência>sequência