Pitadas e punhados

Numa receita de risoto, você lê:”Acrescente três punhados de arroz”. A quanto isso realmente corresponde?

 

Uma velha amiga de Quaraí me enviou por mão própria — talvez por causa da greve dos Correios — algumas voltas de excelente morcilha caseira, juntamente com uma cartinha das antigas, escrita naquele papel aéreo de linhas azuis. Entre várias amenidades, uma pergunta: “Professor, herdei o caderno em que minha tataravó, fazendeira das antigas e matriarca de família grande, costumava registrar suas receitas. Eu quase não cozinho por ele, pois as quantidades são muito imprecisas e as receitas quase sempre dão errado. Vou eu saber quanto era, para ela, uma pitada? E um punhado, quanto é? O senhor tem alguma ideia?”.

Entendo o problema: o Brasil só entrou no sistema métrico decimal no reinado de Dom Pedro II, lá pela segunda metade do séc. 19 — e isso no papel, porque o tempo necessário para assimilar as novas formas de medir estendeu-se ainda por várias gerações. Ora, pelos meus cálculos, quando os brasileiros foram apresentados a quilos, gramas, metros e centímetros, a tataravó da nossa leitora já era moça feita, e, como fizeram quase todas as suas contemporâneas, deve ter dado pouca atenção a essas novidades supérfluas. Sentia-se mais segura usando as medidas tradicionais, baseadas nas dimensões do próprio corpo — a polegada, o , o palmo, o côvado, a pitada —, sem imaginar que seus registros culinários seriam inúteis para sua futura tataraneta.

Pois foi exatamente por esse caráter subjetivo e impreciso que o Ocidente tratou de abandonar o sistema intuitivo que media o mundo segundo os parâmetros do corpo humano. Pés e polegadas têm hoje um tamanho fixo, expresso em quantidades exatas de milímetros  (304,8 e 25,4, respectivamente); no Brasil pré-métrico, contudo, a polegada teria o tamanho da segunda falange do dedo polegar — fosse de um ogro, fosse de uma princesa. O correspondia rigorosamente a uma dúzia dessas flutuantes polegadas, o que, como se pode imaginar, não queria dizer muita coisa. O palmo seria a distância entre a extremidade do polegar e a do dedo mínimo, estando a mão aberta e com a palma virada para baixo; o côvado (ou cúbito), como o nome está dizendo, designava a distância entre o cotovelo e a ponta do dedo médio; a braça era igual à distância de um punho ao outro, com os dois braços estendidos horizontalmente — mas havia divergências quanto a estarem as mãos abertas ou fechadas. A vantagem deste sistema é que ninguém era apanhado desprevenido, pois sempre tinha consigo os instrumentos de medição. No entanto, como seria de esperar, os resultados obtidos não podiam ser exatos; considerando-se as diferenças de porte e estatura que existem entre os humanos, uma hipotética transação entre os patagões e os pigmeus, por exemplo, haveria de resultar numa verdadeira balbúrdia.

Interessante é o caso da milha, que vem da expressão latina mille passuum (“mil passos”), correspondendo à extensão percorrida por um soldado romano de estatura média que tivesse dado mil passadas completas, contadas quando o mesmo pé tocava o chão. Desfrutando de uma avançada rede de estradas, Roma tinha o costume de plantar um imponente marco de pedra a cada milha — os famosos marcos miliários —, que permitiam ao viajante saber a que distância se encontrava da cidade. Uma média da distância entre eles nos permite constatar que a milha romana tinha cerca de 1,5 km; uma legião percorria 20 milhas em 5 horas em marcha normal (cerca de 30 km), e 24 milhas (36 km) em marcha acelerada — nada mal para soldados que carregavam 30 kg de equipamento. Segundo alguns etimólogos, o instrumento para medir as passadas era feito de duas hastes ligadas numa das pontas por uma dobradiça — o que veio a dar, no nome e na forma, o nosso atual compasso divisor.

Chegamos agora ao punhado e à pitada. O primeiro seria a “quantidade de qualquer coisa contida numa mão” — o que, em culinária, é vago e impreciso; numa receita de risoto, por exemplo, a utilização desta medida para o arroz pode levar a um resultado bem diferente do esperado, pois a mão voltada para baixo retém muito menos grãos que a mão voltada para cima, em forma de concha. A pitada, desde o tempo do rapé, é a pequena porção de qualquer substância em pó que se consegue reter entre o indicador e o polegar. Quem cozinha com frequência termina, por tentativa e erro, “calibrando” suas pitadas e pode confiar nelas na hora de dosar o sal, a pimenta ou o fermento; todavia, considerando que há dedinhos e dedões, não servem para transmitir receitas para outras pessoas, como descobriu a amável leitora quaraiense.

À guisa de encerramento, aproveito para lembrar aos amigos que na última segunda-feira de outubro inicia, na Casa de Ideias, no Shopping Total, em Porto Alegre, meu curso de Português voltado para concursos de nível superior. Informações: [51] 82293664 ou portugues@casadeideias.com.