Cigano

No dia em que registrar os valores depreciativos que certos vocábulos assumiram ao longo do tempo for considerado um crime, nossa língua — ou melhor, nossa civilização terá embarcado numa viagem sem volta para a noite escura da desmemória.

 

Esta semana constatei, não sem surpresa, que muita gente graduada não sabe distinguir uma enciclopédia de um dicionário. É verdade que ambos são fontes de referência que organizam suas entradas por ordem alfabética, providenciais bancos de dados a que recorremos quando precisamos de uma informação a la minuta. A grande diferença entre eles, no entanto, é o tipo de informação que um e outro fornecem: enquanto dicionários como o Aulete ou o Houaiss nos informam sobre palavras, enciclopédias como a sólida Britânica ou a controvertida Wikipedia nos informam sobre os seres e os fenômenos em geral.

E não é pouca diferença! Quero saber o significado de burlantim? Vou ao dicionário (sossegue, leitor; é um simples sinônimo de funâmbulo…). Tenho dúvida sobre o gênero de ou hesito na hora de pronunciar o “E” de incesto? Vou ao dicionário e fico sabendo que é masculino (“Sentia um imenso do padrinho”) e que incesto tem o “E” aberto, rimando com funesto. Agora, se preciso descobrir quanto dura a gestação do elefante, qual foi o último rei de Cartago ou quem descobriu os anéis de Saturno, só uma boa enciclopédia poderá me socorrer.

O dicionário reúne e organiza dados linguísticos; o seu assunto é a própria linguagem e o uso que dela fazemos. A enciclopédia, por seu lado, reúne dados sobre a natureza, os povos, os personagens históricos, as coisas, as obras de arte; o seu assunto é o mundo real, concreto, extralinguístico. Mesmo que o dicionário muitas vezes não possa prescindir de uma certa dose de informação enciclopédica (carrapato — “designação comum aos ácaros da família dos ixodídeos e argasídeos”), ele sempre vai muito além dela, pois tem a obrigação de registrar (o que seria inadequado numa enciclopédia) que carrapato também designa um “indivíduo importuno, que não larga outro; indivíduo que se apega com muita força a algo”. De uma enciclopédia espera-se que apresente os conhecimentos que a Humanidade conseguiu acumular sobre o ilustre carrapato; de um dicionário exige-se que relacione e discrimine os sentidos que os falantes dão (ou deram) a este termo.

Pois não é que esta semana o Brasil inteligente ficou sabendo, estarrecido, que um procurador da República de Uberlândia quer obrigar o Instituto Antônio Houaiss a retirar de circulação todas as edições do dicionário Houaiss, que contêm, segundo a excelentíssima sumidade, “expressões pejorativas e preconceituosas relativas aos ciganos”? Confesso que há muito eu não ouvia tamanho disparate, e fiquei tão chocado com a notícia que, a princípio — imaginando que fosse mais um desses boatos propagados pelas ondas do mar da internet —, pus minha mão no fogo pelo procurador: “Um membro do Ministério Público não vai cometer o erro primário de confundir o texto de um dicionário com o de uma enciclopédia”, sentenciei — mas, ai de mim, logo me convenci de que teria feito melhor se tivesse deixado a mão no bolso: era tudo verdade!

Ocorre que este dicionário — de longe, o melhor que já tivemos em língua portuguesa — não faz mais do que a obrigação ao registrar que o termo cigano tem oito acepções, entre elas duas que Houaiss expressamente rotula como “pejorativas”: “aquele que trapaceia; velhaco, burlador” e “aquele que faz barganha, que é apegado ao dinheiro; agiota, sovina”. Afinal, este é, como vimos, o compromisso tácito que todo lexicógrafo que se preze assume conosco: apresentar o repertório de significados atribuídos a cada palavra e indicar as particularidades de seu uso (“informal”, “antiquado”, “chulo”, “regional”, etc.). Nosso douto procurador deveria ter percebido que as informações apresentadas pelo Houaiss — que, desculpem lembrar a obviedade, não é uma enciclopédia — se referem ao termo, e não ao povo cigano. No dia em que registrar os valores depreciativos que certos vocábulos assumiram ao longo do tempo for considerado um crime, nossa língua — ou melhor, nossa civilização terá embarcado numa viagem sem volta para a noite escura da desmemória.

O problema é tão sério que voltaremos a ele na nossa próxima coluna. Enquanto isso, prezado leitor,  divirta-se e instrua-se com a leitura do excelente texto de Danilo Nogueira, Santa Ignorância, no site www.tradutorprofissional.com, que contribui com novos argumentos para esta cruzada contra o obscurantismo.

(conclusão: aqui)


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