dizimar


Acompanhe esta discussão sobre o sentido do verbo DIZIMAR, de onde se extraem dois valiosos ensinamentos: (1) as palavras, assim como as moedas, mudam de valor com o passar do tempo; (2) aquilo que parece novidade pode ser bem mais antigo do que você pensa.

Nem sempre posso aproveitar, nesta coluna, as consultas que me fazem e as respostas que forneço. Mesmo usando nomes fictícios, há casos em que a peculiaridade da pergunta acabaria identificando o leitor que me escreveu, causando-lhe constrangimento ou embaraço. Há muito tempo recebi a carta de um “Quase Caduco” (era o seu pseudônimo, mas de caduco é que não tinha nada), indignado com um colega de clube que o acusou, em público, de ter empregado o verbo dizimar com o sentido errado. Muitos de nós não levariam tão a sério uma simples questão de linguagem, mas para ele, como deixou bem claro, tinha sido uma ofensa mortal; fosse no tempo do rei, não tenho dúvida de que haveria duelo.

Mantive este material, juntamente com a minha resposta, guardado na gaveta por alguns anos — registre-se, aliás, que por exclusiva prudência de minha parte, pois, se dependesse dele, teria sido publicado com todos os efes-e-erres, inclusive com os nomes verdadeiros. Soube que ele faleceu no Natal passado, e resolvi, então, tornar público tanto o seu protesto quanto a satisfação que sentiu quando ficou sabendo que tinha usado o verbo corretamente. Se ele está nos vendo, tenho certeza de que seu triunfo ficaria ainda mais completo se o seu antigo desafeto gramatical lesse esta coluna e, lendo-a, nela viesse a se reconhecer…

Afora algumas grafias obsoletas, sua carta — em papel de correio aéreo, com selo e envelope — era um excelente atestado da boa formação que recebeu, apesar de ter deixado a escola antes de concluir o ginásio. “Nunca me formei em nada; não tive tempo nem dinheiro para isso, mas sempre me interessei por nossa bela língua portuguesa. Leio religiosamente O Prazer das Palavras, assim como lia a coluna diária do saudoso Prof. Luft. Tenho três gramáticas e dois bons dicionários, e procuro não errar quando escrevo. Digo para minhas netas que elas deviam dar à linguagem que usam a mesma atenção que dedicam ao cabelo e à maquiagem, mas as duas riem muito e dizem que eu devo estar brincando. Sei que às vezes eu me engano, mas procuro corrigir assim que me apontam o erro; o senhor mesmo, na ZH de sábado, já me curou de várias manias que eu tinha. Não me importo de aprender; quando me ensinam alguma coisa, dou a mão à palmatória. Só não gosto quando me corrigem em público, principalmente quando um cretino que sabe menos do que eu tem a petulância de querer me dar quinau. Aí, na hora, me ponho tão brabo que fico bobo, perco a fala e esqueço os argumentos”.

Seguia-se o relato da desfeita: ao palestrar na reunião semanal de uma conhecida agremiação, ele tinha classificado o crack como o novo flagelo do século, responsável por dizimar os jovens de baixa renda. Pois, terminada a fala, Fulano de Tal, advogado, mas reconhecidamente uma “grande besta”, tinha pedido a palavra para apresentar um pequeno reparo ao que acabava de ser dito: a etimologia da palavra dizimar (irmã de dízimo) deixava bem claro que o seu sentido estava ligado, desde a origem latina, à ideia de dez, e que o verbo, portanto, tinha dois significados aceitáveis: cobrar a décima parte de bens ou de valores, como fazia o fisco, outrora, e como ainda hoje fazem algumas igrejas — ou, referindo-se a um velho castigo das legiões romanas, executar um prisioneiro ou amotinado em cada dez. E o rematado pedante tinha acrescentado, olhando diretamente para meu correspondente: “Agora apareceu a novidade de usar este verbo com o sentido de exterminar, eliminar um grande número de pessoas. Não pode; não é o sentido verdadeiro da palavra”.

E fora tudo; meu bom velhinho tinha ficado mudo, paralisado pelo tom agressivo do comentário e por ter vindo de quem veio. “O senhor não sabe como é duro tomar lição de pastrana, professor! Fiquei tão abalado que não consegui dizer nem bolacha; com medo de passar mal e fazer um fiasco, pedi licença à mesa e fui embora. Sei que usei o verbo corretamente, mas fiquei um pouco assustado, confesso, com aquele argumento da origem latina — porque Latim eu não conheço, mas respeito. É por isso que venho recorrer ao senhor: não quero voltar ao clube sem estar bem calçado na etimologia; fatalmente vou cruzar com Fulano outra vez e quero pôr tudo isso em pratos bem limpos”.

Coitado! Senti pena do “Quase Caduco”, que tinha encontrado em seu caminho uma das criaturas mais desagradáveis da era da internet — o arrogante proativo, que se põe a corrigir o mundo com aquela onipotência que só o estudo escasso consegue proporcionar. Por causa de sua idade avançada, pensei em recomendar que comprasse uma bengala para usá-la no lombo do indivíduo — o famoso argumentum baculinum dos antigos, tão eficaz nestes casos —, mas compreendi que ele queria ajuda para provar  a todos, dignamente, que não tinha ofendido a língua portuguesa.

* * * * *

Repara: quando você aprende uma palavra nova, ela aparece em todos os lugares.

Millôr Fernandes

Dedicamos a coluna anterior a um leitor que ficou indignado ao ser injustamente acusado de maltratar a nossa inculta e bela língua portuguesa. Recapitulo: em palestra proferida durante uma reunião-almoço da agremiação a que pertence, ao dizer que o crack, o novo flagelo do século, ameaçava dizimar os jovens de baixa renda, foi “corrigido” por um dos presentes, que resolveu vestir, por conta própria, o uniforme de defensor do idioma. Com uma espantosa falta de tato e de educação, este inconveniente cidadão pediu a palavra para lamentar o “uso exagerado do verbo dizimar, que parece estar na moda, bem como a deturpação que o seu sentido original vem sofrendo atualmente”. Então, num tom de quem fala à planície, explicou aos presentes que este verbo, que traz em sua raiz a ideia de dez (decem, em Latim), ou significa separar a décima parte do ganho ou da colheita (o dízimo), ou matar um em cada grupo de dez — castigo que as legiões romanas só aplicavam em casos extremos.

Diante dessa inesperada — e injusta, como veremos — censura pública, meu leitor ficou tão chocado que não atinou com uma resposta à altura. Em casa, depois de destilar o amargo fel da humilhação, ficou mais tranquilo ao ver que os dicionários registravam também o significado que ele tinha dado a decimar; contudo, habituado às voltas e reviravoltas da linguagem, achou mais seguro conferir para que lado o vento anda soprando ultimamente — e por isso me escreveu. Pelo que pude perceber nas entrelinhas, estava se preparando para confrontar o enxerido e queria, com muita razão, reunir toda a munição disponível. Agradeceu muito a resposta que lhe enviei, mas até hoje não sei se houve o confronto final e qual foi o seu desfecho.

Expliquei-lhe que seu desafeto estava certo num ponto, mas errado em vários outros. Estava correta a origem latina que apresentou: decimare realmente designava essa forma terrível de controlar amotinados ou punir desertores. Quando os infratores eram em número grande demais para o castigo individual, o comandante ordenava que um em cada dez, escolhido por sorteio, fosse supliciado diante dos demais, para servir de exemplo. Para atenuar esta pena tão rigorosa, alguns comandantes executavam um em cada vinte (vicesimatio) ou um em cada cem (centesimatio). No período colonial das Américas, houve casos em que as autoridades (tanto do lado português quanto do espanhol) chegaram a mandar quintar guarnições militares rebeladas.

Aqui terminam os acertos e começam os erros. O primeiro, conhecido como falácia etimológica, consiste em defender a idéia de que o valor real de uma palavra é aquele que ela tinha em sua origem, o que nos levaria a buscar esse “sentido verdadeiro” em épocas distantes ou em línguas remotas. Nessa visão equivocada, qualquer mudança ou acréscimo no significado de um vocábulo é visto como uma traição ao sentido “original” e classificado como um sintoma de degeneração da linguagem. Ora, já faz muitos séculos que dizimar passou a designar grande destruição ou mortandade, perdendo praticamente qualquer relação com o número dez.

O segundo, chamado por Arnold Zwicky de ilusão de novidade (Recency Illusion), consiste em classificar como recente um fenômeno lingüístico que vem ocorrendo há muito tempo e que eu simplesmente ainda não tinha percebido. Na maior parte das vezes, uma pesquisa nos autores do passado desfaria instantaneamente esta falsa sensação de novidade; dizimar, por exemplo, desde o séc. 19 tem como sentido preponderante exatamente aquele que nosso intrometido condenou: Euclides da Cunha (“Rompia o espingardeamento à queima-roupa sobre os fanáticos, dizimando-os, espalhando-os, em grandes correrias pelos cerros”); Bilac (“Os anos matam e dizimam tanto/como as inundações e como as pestes”); Rui Barbosa (“Mais cruel do que peste, a guerra dizima a nobre raça”); Taunay   (“cercados pelo incêndio, dizimados pela cólera”); Eça de Queirós (“Já as insolações, as disenterias, a nostalgia, dizimam os regimentos”). Há quem não aprove, contudo, essa mania que tenho de citar exemplos concretos, principalmente quando eles contradizem suas atraentes teorias…

O terceiro, decorrente do segundo, é o que Zwicky chama de ilusão de frequência: depois que nossa atenção é atraída para um determinado fato lingüístico, é natural que passemos a enxergar todas as suas ocorrências — o que nos leva à falsa impressão de que houve um incremento na freqüência de seu emprego. Não foi o uso que aumentou, foi você que abriu os olhos — como Millôr magistralmente descreveu na frase que serve de epígrafe a esta coluna.

Depois do Acordo:

  • idéia > ideia
  • lingüístico > linguístico
  • freqüência > frequência