o rei do roque

Se, como vimos, “crack” pode ser nacionalizado como CRAQUE, o que impedirá que “rock” se transforme em ROQUE? Nada — nem mesmo o fantasma de Elvis, nosso rei eterno e incontestável. Tudo vai depender da preferência dos fãs deste tipo de música.

O fato de eu ter afirmado, na coluna anterior, que convivemos atualmente com duas propostas ortográficas para o nome da droga mais mortífera — ou escrevemos crack, na sua forma de origem, ou escrevemos craque, já com roupagem nacional — desagradou a um leitor de Caxias que assina com o sugestivo pseudônimo de “Crazy Metal”. Ao que parece, a capa vermelha que deixou esse tourinho assanhado foi a ideia de que todas as palavras estrangeiras — excetuando-se os casos extremos, como vimos — todas elas, repito, vão terminar passando pelo processo de aportuguesamento. Como eu já disse antes, esta tendência inexorável à padronização é extremamente benéfica para o idioma, pois ajuda, e muito, a evitar a desestabilização de nossa ortografia. No entanto, por várias coisas que nosso Crazy escreveu em seu e-mail, logo deu para perceber que esta nacionalização das palavras estrangeiras choca muito seu senso estético: “Quem decide como vai ficar? Babacas como você?”; “O nome correto da pedra é crack; craque é coisa de chinelão, e eu sei do que estou falando!”; “Só falta querer dizer que rock pode ser escrito roque” — e por aí afora ele ia, o jovem e rabugento metaleiro.

Relevando o “babaca” — ando na minha fase de máxima tolerância, lembram? —, admito que às vezes essas adaptações também me parecem desenxabidas; bulevar não tem o charme de boulevard, copirraite parece um copyright de quem não foi ao colégio, uísque não soa tão sofisticado quando whisky — mas é pura cisma da minha parte: a forma aportuguesada está nos dicionários desde o final da 2ª Grande Guerra! Quer eu goste, quer não, nosso sistema engoliu e digeriu essas palavras, descomendo-as depois já com sua nova feição. Quem decide que vai ser assim? Ora, caro Crazy Metal, claro que não sou eu, nem ninguém especificamente, mas sim as forças internas do próprio sistema, que sempre atuam a favor do falante. Tornando mais concreto o que pode parecer abstrato, vou explicar melhor: pensa numa pedra irregular que seja jogada no leito de um rio: aos poucos, independentemente de nossa vontade, ela naturalmente gastará suas pontas e suas arestas, tornando-se mais lisa e polida. Pois o mesmo acontece com a palavra: jogada na correnteza do uso, vai assumir uma forma cada vez mais arredondada, até que deixe de ser um cascalho incômodo na boca de quem a pronuncia.

No caso do craque, atua uma força tão irresistível quanto a gravidade: excetuados uns poucos casos, nossa língua não admite aquelas sílabas terminadas em consoante que são tão frequentes, por exemplo, no Inglês. Por isso, sempre que um desses vocábulos é importado, damos um jeito na sílaba desengonçada, acrescentando-lhe um E: club, turf, surf, clip, lord viram clube, turfe, surfe, clipe e lorde. Isso vale para importados de qualquer língua: crack, cognac, frac, chic e bolchevik (e pensar que esta rima já esteve na moda…) viram craque, conhaque, fraque, chique e bolchevique. E o rock? Ora, más (ou boas?) notícias: se o rack de som já está se metamorfoseando em raque (300.000 ocorrências no Google — o que não é pouco), não seria de espantar que o rock um dia venha a virar roque. É claro que, neste caso, o processo vai ser muito retardado pelo prestígio da forma globalizada, mas já se pode encontrar aqui e ali quem prefira roque, variante já dicionarizada — aliás, o único radical utilizado para formar derivados como roqueiro.

Aproveito agora o espaço para mandar recado para um grande amigo meu, que ouvi no rádio, esta semana. Ele falava em lactantes e lactentes: para ele, a distinção é claríssima: lactante é quem está amamentando, lactente é quem está sendo amamentado. No animal humano, portanto, lactante é a mãe, lactente é o bebê. O que parece simples para o doutor, contudo, pode não sê-lo para seus ouvintes. Dos vários pares de vocábulos que se confundem, este é talvez o mais perigoso que conheço. Em primeiro lugar, porque não é comum, na estrutura do Português, pares que se distingam por uma oposição entre ANTE x ENTE (no vocabulário de uso geral, na verdade, este é o único que conheço). Depois — e aí a coisa fica preta —, como ambos aparecem no mesmo contexto da amamentação, a pessoa que recebe recomendações médicas pode trocar um pelo outro, com as sérias conseqüências  imagináveis. Quem emprega esses vocábulos deve estar consciente de que a maioria das pessoas não sabe sequer da existência dos dois termos; ipso facto, deve tomar todas as precauções para evitar mal-entendidos. Médico que fala em programa de rádio, então, nem pensar: deixe os dois vocábulos para quando estiver entre seus pares.

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