Velharias

 

Posso usar palavras tiradas do baú? Pode, é claro — assim como pode andar com chapéu de três bicos e sapatão com fivela.

Aldrovando K., de Ponta Grossa, Paraná, advogado recém-formado, esbarrou num pedregulho colocado em seu caminho por um colega veterano: “A petição assinada por ele fala todo o tempo no imóvel “suso descrito” e nos compradores “juso relacionados”, vocábulos que não constam na minha edição eletrônica do dicionário Houaiss. Pela posição em que a descrição do imóvel vem no texto, imagino que suso seja um sinônimo de “acima”, e juso seja um sinônimo de “abaixo”. Mas de onde saiu isso, professor? Posso usar também? E já que estou aqui, aproveito para perguntar sobre tirante, palavra que me soa muito refinada, mas que um amigo me disse que é velharia. O que o senhor acha? Formas históricas devem ser evitadas?”.

Caro Aldrovando, teu colega está empregando vocábulos que no Bluteau, avô de todos os nossos dicionários, aparecem com a rubrica “antiquados” já no séc. 18. Suso vem do Lat. sursum, “acima”, o mesmo que aparece no sursum corda (“corações ao alto”) da liturgia cristã. Seu oposto é juso, “abaixo, debaixo”, que vamos encontrar em jusante, “maré baixa, rio abaixo”. O Livro de Alveitaria de Mestre Giraldo, um tratado primitivo de veterinária publicado em 1318, no capítulo sobre anomalias, afirma que os cavalos podem nascer “com sua queixada de juso mais longa que a de suso …” (leia-se “a de baixo mais longa do que a de cima”). Os testamentos dos primeiros reis de Portugal estão repletos, como a petição a que te referes, de “suso ditos”, “juso descritos” e outros que tais. Se podes usar também? Claro — como também podes comparecer à audiência com um chapéu de três bicos, casaca com galões dourados e sapatões com fivela, se quiseres te fantasiar de capitão da marinha de Dom João VI. O baú das palavras também está cheio de velharias, prezado leitor, e na linguagem, assim como na vestimenta, tudo é uma questão de adequação aos costumes vigentes…

Já o tirante ainda circula com desenvoltura em nossa língua atual — e nos seus dois sentidos (refiro-me à preposição; como substantivo, tirante é de uso comuníssimo, indo dos vestidos aos arreios da carroça, passando pelas estruturas arquitetônicas). Até o séc. 18 ele era usado apenas no sentido exemplificado tanto por Antônio Morais, em seu dicionário (“cor tirante a amarelo, isto é, que se aproxima a ele”) quanto pelo padre Bluteau (“Ametista — pedra preciosa da cor da púrpura, tirante a roxo”). A partir do séc. 19, no entanto, o termo adquiriu também o sentido de “exceto”: “Tirante esta última hipótese, bem pouco provável” (Rui Barbosa); “Tirante este incidente, o dia passou em completa paz” (Euclides da Cunha). Na linguagem usual, familiar, tirante realmente soaria como pedantismo (preferimos dizer “a cor puxa pelo roxo” e “tirando esta última hipótese”); na linguagem técnica, porém, de terno e gravata, ele não chamará maior atenção.

E para quem aprecia estas nossas discussões quinzenais, participo que vou ministrar um curso rápido intitulado “Origem e Evolução da Língua Portuguesa”, no Instituto Ling, nos dias 22 e 29 deste mês de maio. O motivo desta escolha? Está assim expresso no programa:  “É nossa língua que nos faz ocidentais, herdeiros da Grécia e de Roma, do Velho e do Novo Testamento, da cristandade, da matemática decimal, do calendário gregoriano. Ela foi usada por santos e cruzados, por navegadores, por carrascos e por vítimas da Inquisição. Quando o Brasil foi descoberto, foi nela que Pero Vaz e Caminha, o escrivão da frota, relatou o feito ao rei de Portugal; foi nela que Camões cantou seus amores e Vieira pregou na Igreja contra as invasões holandesas, falando a colonos, índios e escravos. Quem viajar pela história de nossa língua vai entender o quanto devemos ao Grego e ao Latim, vai poder avaliar a dívida cultural que temos para com os árabes, os povos indígenas e africanos e − para a surpresa de muitos − descobrir o quanto o Português contribuiu para outras línguas do mundo”.