Dois a um

“Conhecer uma língua estrangeira aumenta em muito a nossa capacidade de entender nossa língua materna”

Ao longo desses quase vinte anos de coluna, já devo ter respondido algumas vezes à pergunta que me envia Nise P., de Juiz de Fora: afinal, em termos de vocabulário, quem leva a melhor − o Inglês ou o Português? Diz ela: “Na minha última viagem à Inglaterra, fiquei surpresa quando o atendente da quitanda não entendeu meu comentário de que as bananas estavam green, isto é, verdes; foi só no hotel, olhando o Google, que me dei conta do mico: a palavra certa seria unripe, porque green só serve para a cor. Por que eles têm duas palavras onde só temos uma?”.

Pois aí está, de forma bem concreta, prezada Nise, a comprovação de que conhecer uma língua estrangeira aumenta em muito a nossa capacidade de entender a “língua que bebemos com o leite”, na bela expressão de Cervantes para descrever a língua materna. A inevitável comparação entre os dois sistemas nos faz enxergar, a cada passo, características que antes passavam despercebidas, especialmente no léxico, e nos damos conta, como tu, de que nossa língua pode fazer distinções que a outra não tem, e vice-versa. Reconheço que fiquei muito orgulhoso quando fiquei sabendo que o Espanhol  designa com uma só palavrinha (celo, celos) o que nós distribuímos meticulosamente entre três, zelo, cio e ciúme  — mas logo ali adiante vi o jogo empatar, ao saber que eles distinguem entre sino e pero onde temos apenas o nosso mas.

Na verdade, o idioma inglês tem um léxico mais rico do que o nosso. As razões são conhecidas: sendo uma língua do tronco germânico, como o Holandês e o Alemão, o Inglês recebeu também forte influência do Latim da Igreja e do Francês (através dos Normandos, que ocuparam a Inglaterra do séc. 11 ao séc. 12 − o que, aliás, teria daria um simbolismo especial a uma decisão da Copa entre a Inglaterra e a França, não tivesse a Croácia surpreendido os súditos da rainha Elizabeth). Por causa disso, o léxico apresenta uma variada mistura dessas três diferentes origens − o que faz com que os falantes do Inglês tenham mais escolhas do que nós, dispondo de dois vocábulos onde temos apenas um.

As redes sociais comentam o aborto da cantora? Lá seria feita a distinção entre abortion (como em “legalização do aborto”) e miscarriage (“O choque provocou o aborto”). O nosso voto lá é trocado por dois: vote (“pôs o voto na urna”) e vow (“voto de pobreza”). Eles têm dois tipos de banco: bank (onde mora o dinheiro) e bench (o banco da praça). Nossa política lá vai ser traduzida por politics (na pena corrosiva de Ambrose Bierce, “a condução dos negócios públicos para proveito dos particulares”) ou policy (a política da empresa). Falamos sobre o sucesso de um casamento? Essa frase é ambígua para nós, mas nunca o seria no Inglês, pois ele distingue wedding (a cerimônia) de marriage (a convivência).

Às vezes o escore aumenta para três a um. Onde temos raio, por exemplo, eles têm (1) ray (“raio de luz”, “pistola de raios”), (2) radius (o “raio de um círculo”) e (3) lightning (a “descarga elétrica”). Aqui, podemos dobrar o papel, o braço, a aposta e dobrar à esquerda; lá, fold o papel, bend o braço, double a aposta e turn à esquerda. Usamos tocar onde eles usam touch (fazer contato), play (tocar um instrumento) e ring (o telefone). A nossa receita corresponde, na língua deles, a recipe (culinária), prescription (médica) e revenue (“a receita do município”).

Esses, Nise, são apenas alguns dos tantos exemplos que eu poderia mostrar. Confesso que alguns deles me deixam com inveja (no mundo da linguagem, distinções precisas de significado são ouro puro), mas me contento com o nosso tesouro, que eu não trocaria por toda essa lista de casos: a oposição entre ser e estar. Nós distinguimos naturalmente “ela é bonita” de “ela está bonita”, coisa que o Inglês não pode fazer porque dispõe, para ambos os casos, do simples verbo to be, sendo obrigado a recorrer a expressões auxiliares para assinalar a distinção entre o permanente e o transitório, fundamental na vida e na Filosofia.

[Publicado em ZH – 12/07/2018  | Ilustração de Edu Oliveira]