déjà vu

Prezado Prof. Moreno: certa vez, enquanto assistia o filme Matrix, vi usarem uma expressão e gostaria de saber o signicado. Não sei como se escreve, mas com certeza dá pra entender o sentido: “dejavu“. Ocorre quando um grupo está subindo uma escadaria, no mundo virtual, e o mocinho do filme, Neo, percebe que um gato preto passa duas vezes em uma porta. Fico muito agradecido por sua ajuda!”

Fabiano D.

Prezado Fabiano: quando li a tua pergunta, tive a nítida impressão de já ter falado sobre isso em algum artigo da minha página. No entanto, pesquisando no índice geral, percebi que eu estava enganado. Isso teria sido uma experiência de déjà vu? Não no sentido clássico do termo; diríamos apenas que foi um equívoco da minha memória. A expressão déjà vu vem do Francês e pode ser traduzida literalmente como “já visto”; ela começou a ser usada tecnicamente no início do século XX para designar a estranha sensação de já ter visto ou vivido algo que, paradoxalmente, está acontecendo pela primeira vez.

Nós todos sabemos que nossa memória às vezes pode falhar; nem sempre conseguimos distinguir o que é novo do que já era conhecido por nós. Eu já li este livro? Já assisti a este filme? Já estive neste lugar antes? Eu conheço esse sujeito? — essas são perguntas corriqueiras de nossa vida. No entanto, essas dúvidas não são acompanhadas daquele sentimento de estranheza que é indispensável ao verdadeiro déjà vu. Eu posso até me sentir um pouco confuso, ou indeciso, ou triste por sentir que minha memória já não tem a limpidez de outros tempos, mas isso é natural; o sentimento associado ao déjà vu clássico não é o de confusão ou de dúvida, mas sim o de estranheza. Não há nada de estranho em não lembrar de um livro que eu já li ou de um filme a que eu assisti; estranho (e aqui entramos no déjà vu) é sentir que a cena que me parece familiar não deveria sê-lo. Tenho a sensação esquisita de estar revivendo alguma experiência passada, sabendo que é materialmente impossível que ela tenha algum dia ocorrido.

No entanto, sabemos que o uso pode mudar o significado das palavras, seja para ampliá-lo, seja para restringi-lo. Embora eu possa lamentar algumas dessas mudanças (nos casos em que eu gostava mais do significado primitivo, originário), sou obrigado a ver, nesse processo de mutação semântica, um fator extremamente benéfico e enriquecedor do idioma. Colocando em termos bem concretos: os dicionários engrossam não apenas pelos novos vocábulos que entram no léxico, mas também (e principalmente) pelos novos significados que são acrescidos aos verbetes já existentes. Quando a expressão déjà vu saiu das publicações especializadas em Neurologia e Psicologia para entrar na imprensa comum, o público, atraído por sua tradução literal (“já visto”), passou a usá-la para designar aquelas situações em que a pessoa tem a sensação de estar vivenciando algo que lhe parece familiar. Pode parecer ironia, mas a expressão que a linguagem técnica associa à estranheza passou, na linguagem usual, a indicar familiaridade. É nesse sentido que escreveu um conhecido comentarista político: “Assistir à instalação na nova CPI trouxe-me uma triste sensação de déjà vu” —, um lamento que equivale à forma popular “eu já vi esse filme”.

Parece que o deslizamento semântico da expressão ainda não estabilizou: já há quem use a expressão para designar simplesmente uma situação que está acontecendo pela segunda vez: “Eu não fiquei embaraçado com a cena, porque para mim ela já era um déjà vu“. No filme Matrix, Keanu Reeves vê, com um intervalo mínimo, um gato passar duas vezes por uma porta, e descreve o fato como um déjà vu — aqui num emprego ainda mais distante do primitivo, pois designa o fato de que ele realmente viu uma coisa acontecer duas vezes. Com essa atual indefinição de significados, recomendo cercar de todas as cautelas possíveis o uso desta expressão, pois nada me assegura que meus leitores vão entendê-la da mesma forma que eu.

Os especialistas em bobagens reagem contra a limitação do vu, que restringiria (eles não conseguem generalizar, meu Deus!) ao mundo do que pode ser “visto”, e já soltaram por aí formas paralelas que fariam referência mais específica aos vários tipos de situação: déjà vécu (“já vivido”), déjà lu (“já lido”), déjà entendu (“já ouvido”), déjà visité (“já visitado”) — o que me faz esperar, ansiosamente, por um déjà mangé (“já comido”) ou um déjà bu (“já bebido”), que ninguém é de ferro.

P.S.: escreve-se mesmo com esses dois acentos estrábicos, um para cada lado (este é um bom exemplo para aqueles que ainda acham que a acentuação do Português é confusa…). Pronuncia-se /dê-já-vu/; a sílaba final não é nem /vu/ nem /vi/, mas sim o famoso “U” francês, o “U” com biquinho.