Palavras sem Fronteiras — Sergio Correa da Costa

Quando um homem chega aos 60, diz Borges, percebe que reuniu, ao longo de toda a vida, uma certa quantidade de fatos, de frases e de anedotas mais ou menos interessantes, e que a idade agora lhe dá o direito de mostrar aos outros esta coleção pessoal. Exercendo esse direito, Sérgio Correa da Costa, em seu Palavras sem Fronteiras (Ed. Record, 866 páginas), resolve nos mostrar a coleção de palavras internacionais que juntou ao longo de sua vida como diplomata de carreira: são três mil palavras e expressões, provenientes de 46 idiomas, que são compartilhadas irmãmente pelas oito principais línguas do Ocidente. O autor é também membro da Academia Brasileira de Letras, mas infelizmente, como sabemos, isso não é mais credencial de coisa alguma em nosso país.

Muito mais importante, para este livro, foi sua atividade diplomática, sua vida em embaixadas de primeira classe como Londres e Washington, sua participação nas Nações Unidas — todas elas formas douradas de exílio, que terminam desenvolvendo, nos diplomatas mais talentosos, aquela mesma intuição dos exilados e dos apátridas multilíngües, habituados a viver a tensão de várias línguas (lembro o exemplo bem mais ilustre de Guimarães Rosa, também diplomata, que incorporou ao seu Português elementos de inúmeras outras línguas, sem cair, para nossa sorte, no delírio quase onanista de um James Joyce).

O livro tinha tudo para dar certo. A idéia do Embaixador até que é boa: definir quais são as palavras que constituem aquele fundo comum, globalizado, recolhido nos quatro cantos do mundo e utilizado por todas as línguas de cultura. O gênero em que ele se aventurou é extremamente promissor: poucos textos de divulgação séria em Lingüística foram produzidos até hoje no Brasil, ao contrário da História, da Política, da Psicanálise, por exemplo, que já oferecem muitas opções para o leitor interessado, mas não especialista. O formato que ele deu a seu livro — em grande parte determinado pelo próprio material a ser descrito — também está na moda: é um desses modernos almanaques, recheados de dados e fatos pitorescos, frouxamente agrupados sob algum tema condutor, lembrando o Livro dos Fatos, do Asimov, ou o Guia dos Curiosos, de Marcelo Duarte, tão ao gosto do leitor já viciado na estrutura fragmentária da internet. Com todos os ingredientes para dar certo, o livro, contudo, é uma decepção. Parturient montes, nascetur ridiculus mus — o que, em linguagem, pode ser explicado como “a montanha pariu um ratinho”. Explico.

Quando li, em um jornal de São Paulo, sobre o lançamento do Palavras sem Fronteiras, com suas 866 páginas (o porte de um dicionário médio), fiquei fascinado com o que prometia o seu avantajado volume. Eu sabia que o autor não era do ramo, mas isso nunca me impediu de apreciar o já clássico As Línguas do Mundo, de Charles Berlitz, despretensiosa mas interessante coletânea de fatos sobre todos os idiomas do planeta. O livro do Embaixador, contudo, tem um erro de concepção, que um bom editor (no sentido anglo-americano do termo) teria evitado: o livro propriamente dito ocupa menos da quarta parte dessas tantas páginas. Mais de setecentas delas trazem apenas um córpus de 16.000 frases, diligentemente coletadas em publicações do mundo inteiro, onde aparecem as palavras que o autor selecionou. O que é pior: essas frases todas vêm sem um comentário sequer, nem ao menos a tradução — sim, porque o Embaixador as reproduz na língua original, é claro (Francês, Inglês, Português, Alemão, Italiano, Espanhol). Ainda bem que, lá pelas tantas, ele avaliou seus possíveis leitores, farejou nossa ignorância e fez uma suprema concessão: como ele mesmo afirma, “para não sobrecarregar o texto com transcrições em cirílico (!), as citações dos autores russos aparecem traduzidas para o Francês ou Inglês e situadas entre colchetes”. Tende misericórdia de nós!

Um bom editor chega a cortar capítulo inteiro de escritor consagrado, se julgar necessário. Comparem, por exemplo, a versão editada do Red Badge of Courage, do Stephen Crane (uma pequena obra-prima), com a versão original do autor, lenta e desigual. O Embaixador precisava de um editor assim, que lhe apontasse com energia o caminho óbvio para escrever um grande livro (se a tanto o ajudar o engenho e arte, é claro): (1) eliminar aquele amontado de frases (700 páginas!), que estão ali apenas como testemunho de que determinada palavra é usada nesta ou naquela língua; (2) relacionar todas as palavras que ele escolheu e fazer um verbete de cada uma (este, aliás, é um livro por fazer; está caindo de maduro, sr. Embaixador). A grande contribuição que o autor poderia dar seria explicar o significado e o uso dessas palavras que, ele tem razão, constituem uma parte do vocabulário universal: déjà vu, laissez-faire, angst, diktat, apparatchik, avatar, leitmotiv, weltanschauung (o que me lembra de acrescentar: não esquecer a pronúncia!).

Como não é do ramo, às vezes suas incursões pela Lingüística levam-no ao desastre. Numa seção bizarramente intitulada “O Inglês, gêmeo do Chinês“, divulga a idéia maluca de um tal Bodmer, que afirma ter o Inglês evoluído de uma forma assemelhada à do Chinês! Para sustentar tal disparate, Mr. Bodmer observa que ambos os idiomas têm muitos monossílabos, ambos têm muitos homófonos e ambos levam em conta matizes de entonação. Ora, confundir o Inglês com o Chinês é como confundir um porco com uma ovelha, só porque os dois andam de quatro e têm o focinho oposto à cauda. O tom, para o Chinês, é muitas vezes o único traço que permite distinguir entre duas ou mais palavras cuja composição em termos de vogais e consoantes é exatamente a mesma. No exemplo clássico, /ma/, dependendo do tom com que é pronunciada, significa (1) mãe; (2) cânhamo; (3) cavalo; ou (4) reprimenda. Por isso sempre se usa o Chinês (Mandarim) como exemplo de uma língua tonal, enquanto o Inglês (e todas as línguas do Ocidente) são atonais. Aliás, por esse mesmo motivo a espionagem mundial descobriu que a leitura labial é quase inútil para descobrir, de longe, o que um chinês está falando.

No confronto que o autor faz, a cada passo, entre o Inglês e o Francês, ele torce — honesta e abertamente — pela língua dos diplomatas, o Francês, usado desde o final do séc. XVIII nos tratados entre povos de línguas diferentes. É por isso que todo o vocabulário do ofício diplomático provém desta língua; deve ser também por isso, imagino, que o desastrado Itamarati (que teima em usar aquele seu Y, kitsch quanto um cisne empalhado) eliminou o Francês dos requisitos básicos para ingresso na carreira diplomática brasileira. O Embaixador — que é do ramo — não diz uma vírgula sobre isso. Segue comparando Inglês e Francês, numa atitude de juiz completamente parcial. No capítulo sobre o Inglês, vai direto ao fígado, citando Dickens quando se lamenta, em carta a um amigo: “A dificuldade de escrever em Inglês me aborrece extremamente. Ah, meu Deus! Se eu pudesse escrever sempre nessa bela língua da França!”. Podemos avaliar a enormidade desse desabafo se o puséssemos na boca de um Eça de Queirós ou de um Machado. Tendo confirmado a hegemonia absoluta dos traços culturais franceses e anglo-americanos, o Embaixador, depois de lembrar que os dois gigantes são seguidos de muito perto pelo Latim (ele se refere às expressões e palavras ainda usadas em Latim, e não aos radicais), escreve o melhor capítulo do livro, ao entrar no mundo do Latim moderno e sua luta para se adaptar à civilização atual. Embora nada tenha a ver com o tema do livro, é um saboroso parêntese, em que o Embaixador revela um fino gosto pela palavra, um ouvido aguçado para aquelas ressonâncias sugestivas que fazem a delícia do leitor. Ou não é significativo saber que a famigerada CIA é Sedes Centralis Exploratoria (Sede Central de Exploração)? Que nossa inocente fita adesiva vira uma taenia glutinosa? Que estar online é estar directe colligatio? Que a ninfomania é ardor insanus, e uma ninfeta é uma puella inverecunda (“donzela impudente”)? E, finalmente, que a união das esquerdas é confoederatio sinistra?

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