sábia, sabia e sabiá

Boa Tarde, Professor Moreno! Tenho uma dúvida e gostaria que o senhor me ajudasse com as palavras sabia (verbo), sabiá (substantivo), sábia (adjetivo). A explicação que tenho é que os acentos foram colocados para distinguir a classe gramatical das palavras acima (verbo, substantivo e adjetivo), e assim reza a gramática. O que equivale a dizer que os acentos são diferenciais de intensidade, correto? Ora, no entanto, recebi uma explicação de que os acentos são justificados como deslocamento de sílaba tônica. Deslocar a sílaba não seria mudá-la de lugar? Como deslocaria as sílabas tônicas? Se eu respondesse, numa prova, que os acentos são diferenciais de intensidade, e justificasse suas classes gramaticais, estaria errada? Contando com sua resposta, agradeço. Sandra — Cuiabá

Minha cara Sandra: quando os deuses queriam enlouquecer um pobre mortal, soltavam sobre ele uma praga de moscas que o atazanavam noite e dia. Isso aparece no ciclo de tragédias de Orestes, e Sartre vai, bem mais tarde, retomar o tema na sua peça As Moscas. Hoje, com a Internet, as moscas podem aparecer na forma de dezenas de mensagens idênticas, sobre o mesmo tema, assinadas pela mesma leitora — foi o que aconteceu com a tua pergunta. Como eu não quero mais receber e-mails sobre o deslocamento da sílaba tônica, aqui vai tua resposta (furando a fila de quase 1.000 outras perguntas — e não é exagero!).

O teu professor está coberto de razão: sabia, sábia e sabiá não podem ser considerados acentos diferenciais. O acento diferencial é um acento especial, casuístico (isto é, foi estabelecido caso a caso, e não por regra geral), que distingue visualmente dois vocábulos que poderiam (na concepção de nossos ortógrafos) ser lidos erroneamente. Um exemplo que NÃO é diferencial: fábrica é marcado por acento gráfico por causa da regra das proparoxítonas; ele não foi colocado ali casuisticamente, e o fato de servir para distinguir de fabrica (do verbo fabricar) é mera coincidência. Acento diferencial é pôde (o pretérito de poder), que não receberia acento por regra alguma, já que é uma das palavras-padrão do Português (paroxítona terminada em –e, como parede, rede, sobe e milhares de outras). Aqui, sim, o acento aqui foi instituído com a finalidade específica de evitar a confusão com pode (presente do indicativo).

Exatamente por serem acentos atribuídos fora do sistema de regras, os diferenciais são listáveis (e não passam de um punhado de casos); formam o que se chama, em Direito, de numerus clausus (uma série fechada, finita e determinada). Bem ao contrário, a regra das oxítonas, por exemplo, se aplica a todas as palavras que existem e aos milhares que vão surgir: ela é de aplicação infinita.

O adjetivo sábia é acentuado pela regra das paroxítonas terminadas em ditongo crescente, como glória, história; sabiá é acentuado pela regra das oxítonas, como aliás e vatapá; sabia, por sua vez, assim como fobia e covardia, é outro final-padrão e, portanto, não-acentuado. Aqui não há “deslocamento” da sílaba tônica. Trata-se de três vocábulos completamente diversos, cada um com a tônica recaindo em sílaba diferente (-bia; sa-BI-a; sa-bi-Á); submetidos ao nosso sistema de acentuação gráfica, dois deles ganharam acento, e o outro não.

O deslocamento da sílaba tônica (pelo menos no nível das gramáticas escolares, como o Bechara, o Celso Cunha, o Said Ali, o Luft; nos mestrados e doutorados, já é outra coisa, mas não interessa ao teu caso) é muito raro, pois se refere a um vocábulo que tem a sua tônica mudada de lugar. Vais encontrar poucos exemplos nas gramáticas. O mais conhecido é o de caRÁ(c)ter, que passaria, no plural, a caracTEres — aqui sim, a tônica se desloca. Portanto, minha cara Sandra, teu professor está correto, e tu, errada. Dá o bracinho a torcer; espero que, ao menos nisso, não sejas tão insistente. Um abraço, e continua minha leitora. Um dia desses vou escrever, na seção de Curiosidades, algo sobre a expressão “a mulher do piolho” — e não sei por que isso me ocorreu agora. Prof. Moreno

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