velas e velórios

 

Assim como o verbo SELAR é o ponto de encontro de duas famílias distintas — selo e sela —, VELAR também serve a dois senhores.

Imagine o leitor que dois pequenos rios, nascidos a dezenas de quilômetros um do outro, desçam para o mesmo vale e ali acabem misturando as águas para formar um

novo rio que as levará para o mar. Algo muito semelhante ocorre, com freqüência, no mundo das palavras, como você poderá ver no exemplo que descrevo a seguir: a partir do Latim sigillum, nosso idioma produziu sigilo e selo, dois vocábulos que antigamente designavam o sinete que tornava inviolável uma carta ou um documento. Com o tempo, sigilo assumiu o significado de “segredo”, enquanto selo passou a designar também a estampilha que corresponde ao porte que deve ser pago para enviar qualquer correspondência. Este é o primeiro rio.

Bem longe dali, a partir do Latim sella (“cadeira, assento”), formou-se o substantivo sela, nome genérico do assento de couro que usamos nos animais de montaria. A bicicleta, que é o cavalo urbano, recebe uma versão reduzida da sela, que se chama, não por acaso, de selim. Este é o segundo rio. Ora, selo e sela, embora sejam vocábulos de origem e significado diferentes, como vimos, acabaram produzindo um verbo derivado idêntico — selar —, misturando definitivamente suas águas. Um bom dicionário, aliás, para seguir a boa técnica, tem a obrigação de abrir dois verbetes diferentes, um para cada selar, pois se trata de dois vocábulos individuais que casualmente convergiram na mesma forma.

A situação que acabo de descrever vai servir de resposta à pergunta de um ilustre leitor desta coluna (tem nove anos apenas, mas vai completar dez em agosto, o que, ele imagina, vai colocá-lo em outra fase da vida…). Da última vez em que conversamos, em um desses churrascos de família, mostrou-se descontente com a expressão ameaça velada, que tinha encontrado num conto de Sherlock Holmes, que ele tanto aprecia. Para ele, velado deveria designar aquilo que está bem iluminado, bem claro, mas seu pai, de quem fora se socorrer, tinha definido o termo como algo “obscuro, escondido”, conforme o texto deixava entender. Ora, dizia ele, não costumamos velar os defuntos? Não ouvia ele o avô se referir seguidamente a lâmpadas de 40 velas, de 60 velas? Afinal, não gira tudo em torno da iluminação? Então, por que ele não podia entender ameaça velada como uma ameaça feita às claras, cara a cara, olho no olho?

Se você está lendo esta coluna desde o início, meu jovem amigo, já deverá ter percebido que a solução do problema já foi antecipada pela história dos dois rios que se unem num só. Neste caso, a única diferença é que estamos diante de três (e não duas) palavras diferentes, de famílias diferentes, oriundas de radicais diferentes, que vou descrever individualmente.

(1) Uma coisa é a vela, de cera ou parafina, que acendemos na igreja ou no bolo de aniversário. Desta palavra não se forma adjetivo derivado algum — isto é, não existe um velado ligado à vela de acender. Este é o mesmo substantivo que era usado como medida da luminosidade fornecida por uma fonte; é por isso que as pessoas mais velhas ainda falam em lâmpadas de 60 velas.

(2) Outra coisa é o velório, em que um defunto é velado — isso está ligado ao verbo velar (do Latim vigilare), que significa “vigiar, ficar acordado” e pode também significar “cuidar”: “Isabel entrou no jardim; a pobre menina tinha velado toda a noite” (Alencar); “…tinha velado uma parte da noite” (Machado); “Dei-te um anjo que, de dia e noite, velando e dormindo, te assistisse” (Vieira). O fato de nossa cultura ainda usar velas durante os velórios (há países em que elas são proibidas, por medo de incêndio) é a coincidência que aumentou a confusão entre dois termos, que nada têm a ver um com o outro. Nada impede que alguém seja velado sem haver vela alguma acesa…

(3) Temos, por fim, o adjetivo velado com o sentido de “obscuro, encoberto”, vindo do Latim velare, que significava “cobrir com um véu”. Estamos dentro da mesma família semântica quando dizemos que as mulheres muçulmanas costumam sair à rua com o rosto velado (tapado por um véu): “Os longos cílios velando os brandos olhos (Alencar); “os olhos com as mãos velando” (Machado), etc.

Como você pôde ver, caro leitor, o livro de Conan Doyle estava correto ao falar em ameaça velada — aqui, uma ameaça oculta, como que encoberta por um véu, não manifestada claramente. Aliás, é desse mesmo radical que vem o verbo revelar, que os dicionários definem primeiramente como “tirar o véu”.

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