Deixem nossa língua em paz!

Inspirados no quase esquecido projeto de Aldo Rebelo, o PCdoB-RS propôs, neste mês de abril, uma lei para regulamentar o uso dos “estrangeirismos” em nosso idioma. Até aí, nada de novo, considerando a linha retrógrada e autoritária que vem caracterizando este partido — mas não se entende como a Assembleia gaúcha, geralmente tão séria e ponderada, aprovou este despautério, colocando-se ao lado do que existe de pior no fascismo mundial, seja de direita ou de esquerda.


Deixem nossa língua em paz (1)
[Zero Hora – 23/04/ 2011]

“Quem poderá nos defender? O Chapolin Colorado!”

1 — Quem trabalha na imprensa sabe muito bem que nosso dinheiro ou nossa linguagem são assuntos que sempre mobilizam instantaneamente a atenção do público brasileiro. Não é para menos, pois desperdiçamos muitos anos a discutir mudanças na ortografia ou no padrão monetário, que entravam e saíam das manchetes com aquela persistência cíclica da praga do gafanhoto, deixando na imprensa e nas nossas vidas um rastro considerável de sua passagem. Durante quase três décadas esses dois temas, naturalmente polêmicos, serviram como uma luva para o homem público que quisesse sair da penumbra e ingressar na luz fascinante dos refletores; bastava abraçar um dos dois e dê-lhe entrevista, dê-lhe notícia, dê-lhe convite para o telejornal de domingo. Depois, a realidade tirou deles toda a graça e interesse: a indiscutível estabilidade do real criado por FHC quase nos fez esquecer a época em que país trocava freneticamente de moeda, e a aprovação do último Acordo Ortográfico  (pífio, é verdade, mas novinho em folha) esfriou, ao menos por alguns anos, qualquer outra proposta de reforma.

Ora, inspirados talvez nos modernos ideais de reaproveitamento e reciclagem, alguns políticos ladinos atinaram com outra forma de extrair ouro novo da mina da linguagem, que parecia esgotada: em 1999, o deputado Aldo Rebelo, do PCdoB, apresentou um projeto de lei para proteger e defender (?) a Língua Portuguesa da ameaça dos vocábulos estrangeiros. O estardalhaço foi enorme, como era de esperar, e o projeto, apesar da pobreza constrangedora da justificativa apresentada (o deputado se limita a citar a opinião enviesada de um antigo gramático  — um, não dois, nem três: apenas um), apesar da condenação que recebeu de todos os lingüistas deste país, foi aprovado — para inglês ver, é claro, pois jamais poderá ser posto em prática, e dorme agora, talvez para sempre, nas gavetas do Congresso, depois de ter rendido a seu autor uma colossal exposição jornalística.

A quem me perguntava, na época, por que teriam os congressistas aprovado um tamanho disparate, minha explicação era muito simples: grande parte deles tinha caído numa engenhosa jogada de marketing (Epa! Bata na boca, seu herege, e troque isso já — marquetingue, ou márquetin, ou mercadologia, sei lá — mas troque!): a expressão “defesa da Língua Portuguesa”, ostentada como bandeira por Aldo Rebelo, escondia um sutil truque de lógica, uma “petição de princípio”, porque pressupunha como fato indiscutível que ela estivesse sendo ameaçada. Pronto! Habilmente contrabandeada, a idéia (que é falsa, como veremos) despertava em todos uma reação natural de apreensão: “Bem, se nosso maior patrimônio cultural corre perigo, quem poderá se omitir?”. Assim é covardia! Ninguém tem coragem de ser oposição numa hora dessas, ninguém vai querer ficar, como filho ingrato, impassível e indiferente quando a língua-mãe é ameaçada (e mãe ameaçada, como todo mundo sabe, pega muito mal no imaginário popular)…

2 — Pois não faz muitos dias fiquei sabendo da cansativa possibilidade de mais uma vez ser apresentado outro projeto de lei, do mesmo calibre, agora em âmbito estadual, prometendo novamente aquilo que ninguém está autorizado a fazer: “defender” a Língua Portuguesa do mau uso que seus falantes fazem dos vocábulos de origem estrangeira — em outras palavras, defender os falantes daquilo que eles mesmos resolveram fazer. “Lá vamos nós de novo”, pensei — “só que desta vez os deputados, alertados pelo fiasco da primeira tentativa, vão rejeitar a estrovenga”. Ledo engano! Escrevo estas linhas já ciente de que o projeto, tão equivocado e autoritário quanto o anterior, foi aprovado nesta terça-feira por dois votos, numa decisão que não honra a tradicional qualidade da Assembléia gaúcha.

O projeto é equivocado porque se baseia no princípio ingênuo de que os vocábulos estrangeiros são usados por razões fúteis, quando haveria em nosso léxico vocábulos legitimamente vernáculos que poderiam cumprir o mesmo papel  — o que, como veremos, é falso, já que eles são importados exatamente por expressarem nuanças de significado que os nossos não conseguem transmitir. E é autoritário porque a liberdade de expressão proclamada por nossa Constituição e pela Declaração dos Direitos do Homem implica para cada cidadão o direito de escolher os termos que julgar mais adequados para expressar seu pensamento — e nenhuma lei poderá proibir que ele resolva fazer isso usando vocábulos estrangeiros, expressões regionais, gíria ou até mesmo formas condenadas pela língua culta padrão. O triste é que o PCdoB, sem se dar conta da contradição, aceite defender aqui um tipo de lei que, na Europa, figura no programa dos partidos de extrema-direita — mas sobre isso falaremos na próxima coluna. [Zero Hora – 23/04/ 2011]


Debate sobre a lei Carrion, na TVCOM –

Minha primeira intervenção  – veja aqui

Minha conclusão: veja aqui


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Deixem nossa língua em paz (2)
[Zero Hora – 07/05/ 2011]

“Os bons velhos tempos? Mas os tempos são sempre bons, a gente é que não presta mais!” — Mário Quintana – Caderno H

Dediquei a coluna anterior à análise da lei que regula o emprego de vocábulos estrangeiros na publicidade, na imprensa e nos textos oficiais de nosso estado, recentemente aprovada pela Assembléia; na ocasião, deixei bem claro que, a meu ver, esta lei, além de ferir a Constituição, representa um verdadeiro retrocesso cultural. Ora, como não sou daqueles que procuram encerrar a discussão na base do grito e da carranca, brandindo o diploma como se fosse um porrete —  a famosa cacetada do argumentum baculinum —, vou explicar por que tachei o projeto de equivocado e de autoritário. Vejamos primeiro os equívocos.

1Nossa língua não está em decadência — Reconheço que a idéia central do projeto tem tudo para conquistar a simpatia do público, pois vem ao encontro daquela sensação difusa, compartilhada por grande parte dos falantes, de que algo precisa ser feito para evitar, ou ao menos refrear, a degradação que parece ter atacado nosso idioma; afinal, como escreveu um leitor mais destampado, “temos de fazer alguma coisa para que o Português não caia na gandaia!”. Pois não se preocupe, caro leitor, que isso não vai acontecer; nossa língua está mudando, é verdade — como, aliás, todas as demais línguas do mundo —, mas posso assegurar que a história dessas mudanças sempre apontou para o aperfeiçoamento, não para o declínio. Como diz tão bem a epígrafe de Mário Quintana, o que nos assusta, no fundo, é a rapidez com que o tempo vai se consumindo, e por isso preferimos chamar de decadência toda e qualquer modificação — na moda, nos costumes, na linguagem — que possa nos lembrar que a areia da ampulheta está chegando ao fim. Este tipo de lamento, ouvido em todas as épocas e em todas as línguas conhecidas, é próprio do ser humano, tão fugaz e passageiro. A língua não está em decadência, não — e quem fica indignado ao ver que o jovem de hoje não entende o que lê e mal se exprime com aquele léxico reduzido e aquela tosca sintaxe que o caracteriza, fique sabendo que isso não se deve à mera adoção de algumas dezenas de palavras estrangeiras; o problema tem causas muito mais sérias e exigiria uma mudança radical de atitude e de política cultural, cem vezes mais profunda que essa constrangedora leizinha, tão inócua quanto clister em defunto.

2 — Nossa língua não é autossuficiente — Ao contrário do que afirma a justificativa desta lei, o Português não tem as mesmas palavras que o Espanhol, o Francês ou o Inglês. Said Ali, irônico, já descrevia em 1908 esta postura ufanista: “Nenhuma tão bela, tão elegante; nenhuma tão fecunda, tão enérgica, tão rica; nenhuma com tesouros tão variados e tão inexauríveis. Isto diz cada nação da sua. Isto dizemos nós da nossa. E daí se segue que não temos necessidade de pedir empréstimo a nenhuma língua estrangeira…”. Mera ilusão! Cada idioma tem um léxico próprio, construído pela experiência e pela visão de mundo de seus falantes. É exatamente por isso que uma língua vai buscar lá fora as palavras que não tem, assim como os navegantes do Renascimento iam às Índias para comprar a pimenta e a canela que não vicejam na Europa. Tobogã, iceberg, esqui, trenó e iglu só poderiam vir de culturas com neve, frio e gelo. Batique, sarongue, sagu e orangotango têm a marca das regiões do Oceano Índico. Soprano, maestro, batuta, piano, sonata, virtuoso vêm da musicalíssima Itália. Agora que vivemos a extraordinária revolução introduzida pelo computador e pela internet, importamos do Inglês. É simples assim.

3 — A língua não interrompeu sua evolução só porque eu nasci — Sei que é duro admitir, mas nosso idioma, que vem mudando desde sua origem, continua mudando ainda hoje e vai continuar sua mudança mesmo depois de eu deixar de fazer sombra neste mundo. Ora, como eu passo e a língua fica, não tenho o direito nem a capacidade de decidir quais destas palavras estrangeiras que andam por aí terminarão sendo aceitas pelo idioma. É impossível definir, como sugere o projeto, quais são os estrangeirismos consagrados, pois isso implicaria dizer que os que vieram antes de mim tiveram a sorte de conquistar a cidadania brasileira, enquanto os novos — isto é, os que agora tentam ingressar em nosso território — chegaram tarde demais e devem sofrer os rigores desta nova lei… Quando, no final do séc. 19, o folclórico Castro Lopes esbravejava contra o “depravado gosto de enxertar na língua portuguesa palavras de idioma estrangeiro” e relacionava várias dessas “horripilantes novidades” (a maioria vinda do Francês), não tinha bola de cristal para prever que, da lista que fez, reclame, pince-nez, meeting, aplomb, parvenu, lendemain, charivari e pendant seriam praticamente abandonadas, mas massagem, turista, engrenagem, carnê, greve, envelope, elite, creche, etiqueta, ateliê e líder ingressariam definitivamente no nosso vocabulário usual. (continua aqui)

Depois do Acordo:

lingüistas> linguistas
idéia > ideia

Assembléia> Assembleia