Sim, professores devem corrigir!

Uma jovem professora, bastante cautelosa, envia uma pergunta que soa muito mais como um pedido de socorro: “Não sei se o senhor vai achar minha dúvida um tanto infantil, mas gostaria que opinasse sobre algo que aconteceu com uma colega na escola em que leciono: uma aluninha de 2ª série escreveu em sua prova “ bom”, e ela corrigiu para “está bom”. O pai da criança não gostou da correção e disse que a professora estava errada ao se comportar assim; e o senhor, o que pensa sobre isso? Ela poderia ter corrigido a redação da criança, ou não?”.

Minha prezada colega, não sei muito bem em que termos foi feita a correção, mas, em princípio, a professora estava com toda a razão ao fazê-la. A criança vai para a escola para aprender a língua culta padrão, principalmente a escrita. Falar, ela já fala, e muito bem; na escola, vai aprender que existe uma modalidade especial de Português, que servirá para que ela ingresse no mundo escrito e dele participe para sempre, ao longo de sua vida como cidadã.

Acontece que no início da década de 70, bem no espírito libertário daqueles anos, apareceram alguns românticos extraviados que se puseram a defender a valorização e a consagração das “formas genuínas de falar”, das “manifestações espontâneas da linguagem do povo”. Pois esse até hoje é um dos maiores cânceres que ameaçam o ensino de nosso idioma: confundir a valorização científica de todas as variedades de uma língua (o que é uma coisa boa e desejável para o lingüista, para o antropólogo ou o sociólogo) com o papel que o professor, especialmente o de Língua Portuguesa, deve desempenhar. Nossa função é pegar os brasileirinhos pela mão e conduzi-los nesse mundo totalmente especializado da palavra escrita, mostrando-lhes como ele funciona, quais as suas regras, quais os seus recursos e suas limitações, como ele se compara com o mundo mais familiar da palavra falada. Mesmo quanto à fala, é obrigação do bom mestre fazer a criança entender que existem níveis socialmente caracterizados, ensinando-lhe, inclusive, o que ela ainda não souber, e procurando, acima de tudo, encantá-la e surpreendê-la com as possibilidades do idioma, ao abrir-lhe os olhos (e ouvidos!) para a maneira criativa e enriquecedora com que os grandes escritores souberam utilizá-lo.

É para isso — e só para isso — que nós, os professores de Português, servimos; se não o fizermos, a pretexto de qualquer mistificação pedagógica ou antropológica, estaremos roubando de nossos alunos o mais importante ingrediente de uma digna cidadania, abandonando-os à própria sorte, condenados que estão por sua língua hesitante, com a qual não conseguem expressar as nuanças de sua revolta, nem entender muito bem a sutileza dos estatutos e das leis que os aprisionam.

Repito: não sei se a correção foi feita de modo condenável e inadequado para uma pequerrucha da 2ª série (com ironia, ou rispidez, ou severidade, ou grosseria); quanto a isso, portanto, não posso opinar. Contudo, era obrigação da professora mostrar a essa aluninha que, no texto de uma redação, não se usa o da fala, mas sim o está da escrita. O pai da pequena deverá ficar muito preocupado — aí sim! — no dia em que os professores deixarem de corrigir o que sua filha escreve. Olha, colega, quando penso em todos os mestres que tive, vejo que só tenho gratidão para com aqueles que se deram ao trabalho (e à incomodação, em certos casos) de me ensinar o que achavam que eu deveria saber; esses não renunciaram a seu papel, e ficaram para sempre na galeria de minha memória.

LEIA MAIS:

 

 

Depois do Acordo: lingüística>linguística