Segredos do betão

A tão propalada unificação do mundo lusófono — uma das promessas mais fantasiosas do Novo Acordo — não ocorreu, não vai ocorrer nem PODE ocorrer. Os brasileiros e os portugueses compartilham o mesmo idioma, mas cada um à sua maneira e feitio.

Quase já não se comenta, nestes últimos meses de 2011, o episódio do Acordo e de sua afobada implementação no Brasil. Aqui por essas bandas, onde “novo” é um adjetivo irresistível, ele é visto como fato consumado, pouco importando se nossos irmãos do Velho Mundo, que têm a paciência e a sabedoria de um povo que já passou pela fome e pela peste, ainda não decidiram se vão ou não tragar este caldo indigesto. A ver…

A esta altura, porém, algo deve ter ficado bem claro para todos — mesmo para aqueles que defenderam a necessidade dessa última reforma: a tão propalada “unificação” do mundo lusófono não ocorreu, nem vai ocorrer — na verdade, não pode ocorrer. Além dos milhares de discrepâncias ortográficas que o próprio texto do Acordo acolheu, os falantes daquém e dalém mar dão nomes diferentes a um sem-número de coisas do dia-a-dia, o que faz com que os portugueses riam tanto de nós quanto nós deles.

O assunto veio à baila porque um amigo hospedou uma arquiteta portuguesa que veio a Porto Alegre especialmente para conhecer o belíssimo museu de mestre Siza; como a visitante trouxe na bagagem seus dois filhos pequenos — “os miúdos”, como dizem por lá —, os filhos do meu amigo, também “miúdos”, tiveram uma excelente experiência da diversidade linguística que separa um país do outro. Em plena praça, no recanto infantil, os portuguesinhos correram alegremente para os balanços, saudando-os pelo nome de baloiços — e essa foi fácil, porque a palavra é parecida e, mais importante, o objeto estava ali, diante dos olhos. Mas que diabo seria o tal balancê (com a bênção do Acordo “unificador”, eles escrevem balancé, assim como escrevem bebé e caraté), o tal balancê, repito, que eles em vão se puseram a procurar? A mãe tentou ajudar e lembrou que o nome do brinquedo, no seu tempo de menina, era arre-burrinho — e desenhou, com traço profissional, aquilo que chamamos de gangorra… Depois, examinando com olho crítico o solo macio e regular do parquinho, os dois petizes sentenciaram que aquele era o chão ideal para jogar berlindes — palavra estranha que, como meu amigo verificou depois, era o que chamávamos de bolinhas de gude (aliás, também um nome esquisito e de origem obscura).

O gabinete de curiosidades linguísticas, contudo, ainda tinha atrações por vir: a visitante, encantada com a quantidade de árvores que encontrou em nossas praças e ruas (seu anfitrião mora no bairro Petrópolis), lamentou que na região em que ela vive “o betão praticamente tenha destruído o verde”. Ao se referir, em seguida, ao grande número de auto-estradas e barragens construídas na última década, lamentou, mais uma vez, o avanço da selva de betão — e, com isso, forneceu o contexto necessário para que meu amigo, fazendo as sinapses necessárias, percebesse que ela estava falando simplesmente do concreto, e não de algum vândalo destruidor de florestas, primo português do Ricardão.

Naturalmente curioso, meu amigo veio aqui em casa perguntar por que cargas d’água os portugueses resolveram chamar de betão o que o mundo inteiro chama de concreto. Expliquei que não era uma idiossincrasia lusitana, mas que eles simplesmente tinham adotado um radical derivado do Francês beton, o qual, por sua vez, veio do Latim bitumen, enquanto nós tínhamos escolhido o mesmo caminho do Inglês concrete, que tomou como modelo o concretus latino — embora, fechando o circuito, nosso concreto seja misturado na betoneira. Satisfeito com a descoberta, andou pesquisando na internet portuguesa e deu boas risadas ao encontrar preciosidades (para nossos ouvidos, é claro) do tipo “betão armado”, “betão fresco”, “a cura do betão”, “betão pré-esforçado” (sossegue, leitor; é simplesmente o nosso concreto protendido) — além de um manual intitulado “Mil segredos do betão”.

Ora, estranho por estranho, estamos tão acostumamos com concreto que não percebemos que este vocábulo também é um conceito filosófico fundamental, oposto a abstrato — e que, portanto, um título como “A fragmentação do concreto” pouco nos informa sobre o conteúdo do livro. E o que dizer dos hispanohablantes, nossos vizinhos aqui e na Europa, que chamam o concreto de hormigón? Algo a ver com formiga? Sim. Corominas informa que vem de hormigo, um doce semelhante ao nosso pé-de-moleque, feito com mel e pedacinhos de nozes, cuja textura sugere a do concreto e cujo nome vem mesmo da formiga, por lembrar os grãos que este laborioso e aborrecido insetinho acumula em seus celeiros subterrâneos. Com todo o respeito, vamos convir que hormigón armado sugere aqueles monstros terríveis (em todos os sentidos) que povoavam os filmes B de nossas antigas matinês (ou matinés, para os lusos).

Depois do Acordo:
lingüísticas > linguística

_____________________________________