Blitzes

Onde os italianos dizem raviolo, ravioli, os brasileiros mudaram para RAVIÓLI, RAVIÓLIS; onde os alemães dizem blitz, blitze, os brasileiros estão mudando para BLITZ, BLITZES.

Há pouco mais de duas semanas, um aluno me questionou sobre a manchete que encontrou em jornal de grande circulação no país: “PM faz blitze sucessivas na favela”. “Confio no meu ouvido, professor, e ele me diz que aqui está faltando um S. O senhor não acha?”. Acho, e sempre achei — e ia começar a apresentar meus argumentos quando um segundo aluno, tão rápido no gatilho quanto interessado na matéria, interveio, triunfante: “Mas a palavra já está no plural! O jornal está correto! Blitze, em Alemão, é plural — e, pior, é masculino: um blitz, dois blitze“. Os dois olharam para mim, esperando o meu veredito (para os que preferem veredicto, forma também correta, lembro que não existe letra muda no sistema brasileiro; aqui na Pindorama, como no jogo do bicho, vale o que está escrito: quem escreve aquele C deve também pronunciá-lo) — como eu dizia, olharam para mim, esperando o veredito, e eu então me senti personagem de uma daquelas edificantes histórias orientais, um verdadeiro Confúcio dos trópicos, porque pude me ouvir respondendo: “Saibam vocês que ambos estão cobertos de razão”.

Tem razão aquele que aponta a origem alemã do vocábulo. Blitz significa “relâmpago”, mas aqui está sendo usado como parte da expressão Blitzkrieg (“guerra relâmpago”), conceito tático-militar que Hitler tornou tristemente famoso, e que meu fiel Oxford English Dictionary define como “ataque ou ofensiva desfechada subitamente, com grande violência, com o objetivo de reduzir imediatamente as defesas”. Os ingleses começaram a usar este termo nos anos 40, quando Londres vivia sob o constante fogo da Luftwaffe; no Brasil, há mais de trinta anos ele é usado pela nossa imprensa para designar as batidas que a polícia faz de surpresa, geralmente com efetivo e armamento reforçados. Pelo sistema morfológico do Alemão, o plural do nominativo é blitze.

Por outro lado, também tem razão aquele que sugere que o plural blitzes calharia bem melhor a nossos olhos e ouvidos. Afinal, uma das grandes vantagens do Português é o princípio básico (e extremamente salutar) que rege o sistema de absorção de vocábulos estrangeiros: qualquer palavra que entra em nossa língua deve acompanhar o comportamento das palavras nativas, assumindo os traços fonológicos, morfológicos e ortográficos a que estamos habituados. As estranhíssimas bazooka, maillot e gnocchi há muito circulam por aqui transformadas em bazuca, maiô e nhoque — o que é bom para os brasileiros, que assim não são obrigados a decifrar grafias exóticas, e para as próprias palavras, que podem agora andar por aí alegremente, sem temer o olho sinistro e acusador dos fascistas do idioma.

Como eu disse, ambos têm razão: blitz realmente é uma palavra estrangeira, que, na língua de origem, tem o plural blitze — mas, de tão usada que é, já deveria ter sofrido a nacionalização definitiva, assumindo o plural blitzes, como gizes ou narizes. Não interessa para nós o comportamento deste vocábulo no Alemão; aqui ele vai dançar conforme nossa música. Pouco se nos dá que enveloppe, no Francês, seja feminino; aqui ele virou masculino, e pronto. E não importa que, no Italiano, raviolo e gnoccho sejam o singular e ravioli e gnocchi sejam o plural; os dois  pratos atravessaram o Atlântico e viraram ravióli (plural raviólis) e nhoque (plural nhoques). Por isso, se blitz é masculino na terra de Goethe, aqui se tornou feminino, num processo totalmente inconsciente dos falantes, certamente influenciados por alguma característica sonora do vocábulo. Se a imprensa aderir à forma modernizada, estou certo de que poucos haverão de reclamar, pois estaremos, como se diz, passando a mão no sentido certo do pêlo do gato.

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