A Reforma adiada (3)

A Reforma foi um desastre que resultou de uma trágica sequência de erros e omissões; veja aqui a parcela de responsabilidade que coube à Academia Brasileira de Letras e às editoras brasileiras.

 

Diante do bem-vindo adiamento da entrada em vigor da Reforma Ortográfica, esta é a terceira coluna que dedico a nomear, para que todos guardem, os responsáveis por termos embarcado nesse inconcebível festival de leviandades que tanto prejuízo trouxe e que tanto mais ainda há de trazer ao sofrido povo brasileiro. Na galeria dos culpados, como vimos, o primeiro lugar cabe à Comissão que redigiu o Acordo, que deveria ter encerrado os trabalhos no momento em que se deu conta de que a unificação ortográfica, razão de ser da reforma, era impossível. Em segundo lugar vem o governo Lula, que, obcecado por interesses geopolíticos e diplomáticos discutíveis, jogou o país de ponta-cabeça numa aventura cujas conseqüências tinha a obrigação de prever, mas não previu. Em terceiro lugar vêm o MEC e a Universidade, que calaram por conivência, ou conveniência, deixando de esclarecer, como era o seu dever, o que precisava ser esclarecido. A esses devemos acrescentar, como veremos, a Academia Brasileira de Letras, as editoras e a própria imprensa brasileira.

A Academia — A ABL também não pode se orgulhar da participação que teve neste episódio, pois terminou agravando os danos que o Acordo, por si só, traria ao Brasil. Seus defensores alegam que esta entidade, cuja ação é limitada a nosso país, não tem competência legal para se opor a um tratado assinado por vários Estados soberanos — o que é verdade —, mas, pelo mesmo raciocínio, ela também não tem competência para mudar o que tinha sido decidido, coisa que ela fez sem remorso ou hesitação, para espanto e escândalo de nossos parceiros portugueses. Seu maior erro foi editar o seu próprio Vocabulário Ortográfico, fazendo de conta que não tinha lido, no texto do Acordo, a disposição expressa de que os países signatários deveriam trabalhar na elaboração de um “vocabulário ortográfico comum”. O pior é que, ao ser questionada por essa evidente traição ao espírito que presidiu a Reforma, a respeitável ABL saiu-se com uma resposta de “malandro eshhhhhperto”, algo como “ué, nós já fizemos o nosso; eles que façam lá o seu” — o que soou, aos ouvidos de nossos parceiros, como uma sentença de morte à tão decantada “unificação”. Pronto: com essa atitude de “Mateus, primeiro os meus”, lá se ia água abaixo a concórdia aparente que tinha unido, até ali, os membros da comunidade lusófona, que agora ameaçam seriamente deitar às urtigas tudo o que foi combinado.

As editoras — Desde o início, os editores brasileiros acolheram a ideia de uma nova ortografia como um maná caído do céu, pois julgavam que ela lhes traria uma grande expansão do mercado livreiro (tanto interna quanto externamente), além de facilitar o preparo e o aproveitamento de seus originais. Tinham toda a razão quanto ao mercado interno, pois imediatamente foi necessário fazer vultosas tiragens para suprir as bibliotecas escolares de todo o país, que tiveram de adaptar seu acervo ao novo sistema ortográfico, disputando as impressionantes verbas do Programa Nacional do Livro Didático, talvez o maior do mundo, no seu gênero. Quem apostou nesta ficha se deu bem.

A perspectiva de ampliar o mercado externo, contudo, murchou como balão furado assim que ficou claro que a Reforma tinha muito pouco de unificadora, sepultando para sempre a ideia fantástica (e ingênua), alimentada no início, de que a ortografia unificada viria permitir que um original, com o mesmo trabalho de editoração, fosse consumível em qualquer um dos países signatários do Acordo. Na medida em que estaria livre de marcas ortográficas locais, o mesmo texto poderia circular por todo o mundo lusófono com a mesma facilidade que uma chave mestra abre todas as portas do hotel; um livro composto e impresso no Brasil poderia, desta forma, ser exportado sem a necessidade de ser reeditado com as adaptações necessárias para adequá-lo ao mercado lusitano, e vice-versa.

O irônico é que essa avaliação errônea foi compartilhada  pelos editores daqui e de além-mar, mas com sentimentos opostos: os nossos a se felicitarem pela perspectiva de abocanhar uma nova fatia do mercado (os 40 milhões de leitores que seguem a norma portuguesa); os deles (falo de Portugal), a lamentarem o golpe dado pelo Brasil, que, com seu parque industrial mais moderno e pujante, passaria a ameaçar diretamente a indústria lusitana do livro e sua participação no mercado africano. Ora, como se viu, nada disso aconteceu, pelo simples fato da Reforma — volto a reiterar — não ter unificado coisíssima nenhuma. Parece que nossas editoras não consultaram especialistas (ou não quiseram acreditar nos especialistas que consultaram, o que dá na mesma); se o tivessem feito, teriam se dado conta, desde o início, de que o Acordo era um tigre de papel e de que a Reforma precisava ser implantada com mais estudo e cautela.

(continua)

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