Salve, Jorge!

 

O vocativo vem separado por vírgula para evitar que o leitor o confunda com uma parte integrante da estrutura sintática: “Não coma gordura animal” é muito diferente de “Não coma gordura, animal”. Seja em títulos, saudações, insultos, não importa: “Salve, Jorge!”; “Ave, César!”; “Oh, Susana!”; “Acorda, Brasil!”  — a vírgula sempre estará lá.

Resolvi aproveitar esta coluna para responder, de uma só vez, a vários amigos que escreveram para perguntar se realmente é necessário usar uma vírgula para separar os vocativos — e já vou dizendo, sem delongas, que sim: esta vírgula é absolutamente indispensável, pois evita que o vocativo, que sempre será um corpo estranho na estrutura sintática, seja tomado pelo leitor como parte integrante da frase. É ela que nos permite distinguir entre coisas tão diferentes quanto “Não coma gordura animal” e “Não coma gordura, animal”…

Jéssica, que informa ter 10 aninhos (golpe baixo, porque nunca deixo de responder aos leitores mirins), está um pouco atrapalhada com o tema de Português (colégio bom, esse!): ela quer saber se existe diferença de sentido entre “Você entende Joaquim?”e “Você entende, Joaquim?”. Pois é claro que existe, mocinha. Em “Você entende, Joaquim?” a vírgula assinala a presença de um vocativo — isto é, estamos falando com alguém chamado Joaquim. A versão sem vírgula diz outra coisa; estamos perguntando a alguém se ele entende um tal de Joaquim (como em “Ninguém entende Maria” ou “Só a mãe entende seus filhos”).

Genivaldo, de Fortaleza (esta coluna vai longe, nas asas da internet…), tem outra preocupação: em exclamações de apoio ou repúdio (mas é bem específico esse nosso amigo, hein?), como é que funciona o ponto de exclamação? Escrevemos “Valeu! Amigo!”, ou é obrigatório usar a vírgula no vocativo? Pois caro Genivaldo, a vírgula continua a mesma, e no mesmo lugar; basta deixar o ponto de exclamação no fim, que já é suficiente: “Valeu, amigo!”; “Cuidado, Corisco!”; “Epa, camarada!”; “Vade-retro, Satanás!”; “Cala a boca, Galvão!”.

Já a secretária Rebeca manda dizer que ela e os colegas não chegaram a um acordo sobre a pontuação da frase “Vagabundo, vai estudar” — “A vírgula não estaria separando o sujeito do verbo?”. Não, prezada Rebeca: nesta frase, o sujeito do imperativo é TU (está elíptico); vagabundo é o vocativo e, exatamente por isso, pode se deslocar livremente (sempre acompanhado, é claro, das vírgulas indispensáveis): “Vai estudar, vagabundo”; “Vai, vagabundo, estudar”.  Se trocássemos o sujeito para VOCÊ, o verbo teria de acompanhar: “estudar, vagabundo!”.

Finalmente, uma leitora do Rio de Janeiro escreveu, alguns meses atrás, para reclamar de um erro na TV: “Professor, a pontuação dos títulos não é igual à pontuação normal? Vocativo não leva vírgula? Como é que a atual novela da Globo não tem vírgula?”. Ora, há mais de trinta anos não sei o que é novela; nada tenho contra elas, pois cada um tem o direito de se divertir como quer, mas confesso que, de minha parte, prefiro perder meu tempo assistindo aos vídeos divertidos do Animal Planet. Como nada mais constava na mensagem, fui pedir ajuda à vizinha, noveleira profissional, que me esclareceu que a novela a que a leitora se referia era uma tal de “Salve, Jorge”. A informação não me bastou. Haveria algum personagem chamado Jorge, que devia ser salvo? Nesse caso, o título deveria ser escrito sem vírgula, para não separar o verbo de seu objeto direto: “Salve Jorge” — assim como “Salvem as baleias” ou, mais radical, “Salvem o planeta”. Não, não, respondeu a prestativa vizinha; ela tinha lido uma entrevista em que a autora, Glória Perez, dizia que o título provinha de uma saudação a São Jorge, muito usada nas religiões afro-brasileiras. Bom, então certa estava a leitora: falta uma vírgula no título. “Salve, Jorge!”; “Ave, César!”; “Oh, Susana!” — tudo é vocativo.

A pontuação se assemelha ao xadrez ou a qualquer outro jogo de tabuleiro: as regras devem ser as mesmas para os dois jogadores — no caso, o que escreve e o que lê. É isso que condena ao fracasso, de antemão, qualquer inovação nesta área, pois o que não for consensual simplesmente não vai funcionar (como definiu Garrincha, com aquela precisão invejável, é preciso antes combinar com os russos…). Falando de suas primeiras experiências literárias, Jorge Luís Borges, com seu manso sorriso de esfinge egípcia, recordava a ingenuidade de seus verdes anos: “Na biblioteca de Alexandria, os primeiros editores de Homero inventaram a pontuação; uns dois mil anos depois, nós, poetas jovens, rechaçamos essa perigosa inovação”. Concluo com uma nota imprescindível, maldoso leitor: não, Borges não estava, com isso, ironizando a discutível “inovação estilística” de José Saramago, que pontua seus textos à moda galega; o genial escritor — falo do argentino, é claro —, que nunca foi agraciado com o prêmio Nobel, morreu em 1986 e não chegou a conhecer, portanto, a obra do português, premiada em 1998.

[Zero Hora – 20/07/2013]