Molhos e molhes

 

Reúna o molho de pimenta, o molho de chaves, os molhos do fondue e os molhes da barra e terá uma maçaroca de significados e de pronúncias.

 

— A leitora Balbina V. quer resolver uma pequena disputa doméstica: visitando a Serra gaúcha juntamente com os netos,  seu marido, ao se referir aos molhos que costumam acompanhar o fondue borguinhão (o de carne, não o de queijo), pronunciou /mólhos/, com o que ela não concordou. Diz ela: “Para mim, molhos com o O aberto é aquela construção de pedra que vai mar adentro, como fizeram na barra do Cassino e do Mampituba, aqui no Rio Grande do Sul. Na comida, deve ser com a vogal fechada mesmo. O que o senhor acha? Aliás, não é por isso que escrevemos com acento circunflexo?”.

Cara leitora, sem querer ser deselegante, eu diria que deste uma martelada no prego mas várias na tábua. Para deixar tudo bem claro, no entanto, temos de fazer algumas distinções etimológicas. Em primeiro lugar — no caso do fondue — temos o molho, o qual, segundo a pitoresca definição de Morais, é “líquido temperado segundo a arte dos cozinheiros, em que vêm certos guisados de peixe ou de carne para terem melhor sabor” (para quem estranhar o guisado de peixe, lembro que aqui o termo está empregado no sentido original de “refogar em temperos”; no Brasil, só os gaúchos usam este termo com o sentido de “carne moída”). Aqui a razão está contigo: o O fica fechado tanto no singular quanto no plural.

Em segundo lugar, temos um outro molho (/ó/), que significa “feixe, conjunto de coisas unidas”. Podemos ter um molho de cenouras, de lenha, de gravetos, de ervas, de espigas, de rosas, de cordas e, naturalmente, um molho de chaves. Neste caso, o O fica aberto tanto no singular, quanto no plural. Vou ceder aqui à despudorada tentação de citar a mim mesmo, em coluna mais antiga: “Como nos ensinavam as boas professoras de antigamente, um molho (/ó/) de espinafre é bem diferente de um molho (/ô/) de espinafre — o que torna o molho (/ô/) de chaves, como muita gente diz, uma radical inovação culinária”.

Em terceiro lugar, aparece mole, aparentemente um estranho no ninho. Este vocábulo vem do Latim moles (“imenso volume ou massa”) e hoje está circunscrito à linguagem literária, tanto no sentido real quanto figurado: “No meio daquela vasta mole de pedra, em que os sons discordes reboavam” (Alexandre Herculano); “A moça teve um deslumbramento: em seu espírito, subitamente iluminado, fez-se vácuo enorme, desmoronou-se fragorosa a mole das ilusões” (Júlio Ribeiro).

De inhapa, uma curiosidade: é daí que vem a molécula (diminutivo latino de moles), termo que antigamente significava “pequena massa; pequena partícula de um corpo”. Pois também é daí que vem o molhe, que Bluteau define, na sua saborosa linguagem setecentista, como “lanço de muro grosso, a moda de cais, que se faz em alguns portos de mar para abrigar os navios do ímpeto das ondas”. Aqui, cara Balbina, tua martelada errou o prego e deu na tábua: o que temos na barra da Lagoa dos Patos, em Rio Grande, são molhes — e não molhos, como pensavas.

Por fim, também te enganas quanto ao acento — mas este é um equívoco totalmente desculpável; quem já tem tem netos em idade de comer fondue deve ter sido alfabetizado antes de 1971, ano em que foi abolido aquele acento que distinguia pares homógrafos que se diferenciam apenas pelo timbre da vogal, como porto:pôrto, almoço:almôço, gelo:gêlo e molho:môlho, entre vários outros (o único a ser poupado até hoje foi pode:pôde). Muitos lamentam a perda deste acento, mas o contexto dá conta do recado. Não há dúvida de que não estamos falando em comida em exemplos como “Depois do almoço fui à casa de D. Plácida; achei um molho de ossos, envolto em molambos” (Machado) ou “No seu farto cabelo, crespo e reluzente, puxado sobre a nuca, havia um molho de manjericão” (Aluísio Azevedo).