o “não” como prefixo

Professor, não tenho certeza sobre como devo grafar “anti-inflamatórios não-esteróides (é uma classe de medicamento). As gramáticas que consultei não falam sobre o emprego daquele hífen depois do não, mas sei que é assim, hifenizado, que o vocábulo aparece em muitos livros e manuais médicos. Afinal, qual é o correto? Em que casos podemos usar o hífen depois da palavra não?

Áurea A. – São Paulo (SP)

 

Prezada Áurea: para desmentir aqueles que vivem resmungando que nosso idioma só piora com o passar do tempo, este não com valor de prefixo, estrela recém-chegada no firmamento da língua, constitui um notável (e moderníssimo) mecanismo para a formação de antônimos. Você quer saber quando ele vem seguido de hífen? Pois sou obrigado, por desencargo de consciência, a registrar que há uma certa controvérsia sobre este ponto, principalmente depois das trapalhadas da última edição do VOLP (mais sobre isso depois). Por isso, como você terá de escolher um dos lados desta disputa, faço questão de lhe fornecer os subsídios que julgo necessários para uma decisão consciente. Em primeiro lugar, reproduzo, abaixo, o que consta sobre o tema no livro Português para Convencer, escrito por Túlio Martins e por este seu criado:

 

“Historicamente, o Português sempre formou palavras negativas usando os prefixos i(n)– e des: ilegal, improdutivo, intempestivo; desleal, desarmônico, descabido. Desde o século passado, no entanto, teve início a prática (também presente em outras línguas, como o Inglês, o Francês e o Espanhol) de usar o não como um prefixo negativo universal, que se acrescenta a um vocábulo já existente (geralmente adjetivo ou substantivo abstrato) para formar um antônimo perfeito.

“O uso do não como prefixo foi uma das grandes novidades com que a língua nos brindou no fim do século XX, permitindo que tudo possa ser dividido em duas categorias complementares, X e não-X — o que constitui uma ferramenta muito útil no discurso argumentativo. Com esse providencialíssimo não, podemos criar divisões binárias de praticamente tudo o que quisermos: os votantes e os não-votantes, os alfabetizados e os não-alfabetizados, os hispânicos e os não-hispânicos, os marxistas e os não-marxistas. Ele até nos permite falar no não-eu ou no não-ser, vocábulos que seriam impensáveis com nossos prefixos negativos clássicos, o ine o des. (…)

“Em muitos vocábulos esse prefixo vai concorrer com os tradicionais prefixos negativos, e geralmente com vantagem. É o que está acontecendo entre duas formações relativamente recentes, inocorrência e não-ocorrência. Ambos são amplamente usados em textos jurídicos, com uma leve preferência, por enquanto, pela primeira forma, que é tradicional. No entanto, não temos dúvida de que a segunda vai prevalecer em poucos anos; o não prefixal permite uma decodificação muito mais rápida do significado do vocábulo por parte do leitor, o que é sempre uma grande vantagem na disputa entre duas formas linguísticas concorrentes.”

[MORENO & MARTINS. Português para Convencer. São Paulo, Ática, 2006. p. 169]

 

Como você pode ver, não se trata de uma simples moda, mas sim de um processo que veio para ficar, superior em muito às outras formas de antonímia porque preserva integralmente o vocábulo original que está sendo antagonizado. Este recurso permite uma simetria perfeita entre afirmativa e negativa, o que nem sempre se consegue através de construções tradicionais.

Qual é a natureza deste processo? Não importa. Sejam formadas por derivação prefixal ou por composição (para muitos, aliás, dois nomes para um mesmo fenômeno), as novas palavras ficam melhor com hífen. Alguns gramáticos mais antigos negavam-se a usá-lo, mas a prática já o consagrou, especialmente porque ele serve para assinalar que o não, aqui, não é um advérbio de negação, mas sim um elemento da composição do vocábulo. Os bons dicionários o usam; o Houaiss, embora declare textualmente que considera este hífen mais adequado em substantivos (não-violência, não-proliferação, não-alinhamento), não deixa de registrar também adjetivos hifenizados, “especialmente no caso de tecnônimos, pois o uso assim os havia consagrado no jargão técnico ou tecnológico escrito”. Apuradas as urnas, constata-se que há uma inegável tendência a empregar o hífen, mesmo que persistam divergências quanto a alguns punhados de palavras.

Sempre coerente na sua onipotência, contudo, a comissão de Lexicologia da ABL, encarregada de elaborar o novo VOLP, foi muito além das chinelas — isto é, foi muito além do texto do Acordo Ortográfico e anunciou, em uma Nota Explicativa, que tinha decidido excluir o hífen dos casos em que a palavra não funciona como prefixo, mencionando, como exemplos, não-agressão e não-fumante, grafados por ela como não agressão e não fumante. No entanto, logo depois, no parágrafo seguinte da mesma Nota — talvez prevendo a inevitável reação contra esta decisão unilateral —, a douta comissão dá uma contemporizada tipicamente brasileira: “Está claro que, para atender a especiais situações de expressividade estilística com a utilização de recursos ortográficos, se pode recorrer ao emprego do hífen nestes e em todos os outros casos que o uso permitir”. Que tal? Firmes como uma rocha…

Eu escreveria, sem a menor hesitação, “anti-inflamatórios não-esteróides“, seguindo o consenso da maioria culta; respeito a decisão dos que preferem não fazê-lo, mas não me venham alegar uma pretensa “grafia oficial” a seu favor, pois aquela Nota Explicativa é apenas a opinião isolada de alguns acadêmicos e não integra o Acordo que o Brasil assinou com os demais países lusófonos. Agora cabe a você, Áurea, escolher o caminho que lhe aprouver. Abraço. Prof. Moreno.

 

Depois do Acordo: esteróides > esteroides