Sai Aurélio, entra Houaiss

“Não há autor mais infeliz que o de um Vocabulário.”

Padre Rafael Bluteau (1638-1734)

1 — Por vinte e cinco anos o dicionário de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira foi um companheiro inseparável no meu trabalho com a Língua Portuguesa. Fui um aurelista de primeira hora; aderi ao Novo Dicionário em 1975, no dia em que foi lançado, e passei entusiasmado para a 2a. edição, a melhor de todas, em 1986 (até hoje eu a mantenho instalada no meu computador). Já a 3a. edição, póstuma, com sua pífia capinha multicor e o título oportunista de Aurélio–Século XXI, não me agradou e perdeu a minha confiança: é que, morto Aurélio em 1989, os atuais editores, em vez de se limitar aos acréscimos indispensáveis e às eventuais correções, tiveram o topete de fazer um sem-número de “revisões” desastradas no texto do Aurélio-vivo (é assim que me refiro à 2a. edição). Está certo, pensei, desanimado — é a Nova Ordem: se alunos ensinam o professor e funcionários escolhem o Reitor, então amanuenses podem agora corrigir o Mestre… Assim mesmo, terminei virando o Milênio com o Aurélio, e aurelista cheguei até este mês de setembro de 2001. Agora, contudo, troquei: começa a Era do Houaiss.

2 — Em 1975, quando surgiu o Aurélio, Antônio Houaiss era o único lexicógrafo militante que poderia criticá-lo à altura. Já trazia na cabeça o plano completo de seu próprio dicionário, mas teve a grandeza de saudar o lançamento como “uma conseqüência natural da grande expectativa que o público brasileiro depositava em Aurélio Buarque de Holanda, credor da estima e do respeito geral”. Essas palavras generosas eram pouco comuns na tradição de nossos dicionaristas, acostumados a se lançar ferozmente sobre o trabalho dos colegas. Sempre tinha sido assim; parodiando Guimarães Rosa, fazer dicionários sempre foi muito perigoso. Era a isso que se referia nosso bom Padre Bluteau, autor da epígrafe que encabeça este artigo. Ele passou 30 anos escrevendo (a mão!) os 10 volumes de seu gigantesco Vocabulário Português e Latino e sabia o que o esperava, pois, como nos diz em seu estilo pitoresco, um dicionário “é a coruja dos livros. Ao redor da coruja se ajuntam outras aves, e cada uma delas lhe dá sua picada: folgam todos de folhear um vocabulário para lhe dar unhadas”. Para prevenir as inevitáveis pancadas, o esperto Bluteau precedeu seu Vocabulário de um extenso prólogo, dividido em seções dirigidas a todo tipo de leitor, entre eles o leitor malévolo, o impaciente, o indouto (“muito dó tenho de ti, leitor indouto: como homem, és animal racional; como indouto, és meramente animal”), ao pseudocrítico, ao impertinente e ao mofino. Não preciso dizer que essas precauções, entretanto, não o salvaram de incontáveis críticas e polêmicas. Depois dele (e usando o Vocabulário como base) vieram os dicionários de Morais, de Roquete, de Lacerda — que foram, por sua vez, alvejados pelas zombarias de Caldas Aulete, numa espécie de “velha a fiar” lexicográfica.

Um cínico poderia até dizer que um dicionarista no eixo Brasil—Portugal limitava-se a duas práticas indispensáveis: plagiar os dicionários que vieram antes e encher de bordoada os seus autores. Era comer e virar o cocho — e aos coices, bem no espírito luso-brasileiro da polêmica lingüística. Em Camilo, por exemplo, podemos ver nosso idioma ser discutido quase fisicamente, em debates em que mais se mostravam os punhos que os argumentos, e onde se pode colher o melhor material sobre insultos verbais em Português. Um tal de Pina, ao enfrentar Camilo, erra o uso do pronome “si”? Danou-se; Camilo, sem piedade, executa-o: “Que vá à escola do vizinho mestre de instrução primária e pergunte-lhe se um pronome pessoal da terceira pessoa pode empregar-se como pronome da segunda. O mestre, naturalmente, responde-lhe cavalgando-o”. E quem não conhece a triste sina da Academia das Ciências de Lisboa? Tendo iniciado, em 1779, os trabalhos destinados à produção de um dicionário “definitivo” para a Língua Portuguesa, os infelizes acadêmicos conseguiram publicar, em 1793, só o primeiro volume, que incluía todas as palavras iniciadas pela letra A — ou seja, de A até Azurrar. A piada estava madura, pronta para colher. Alexandre Herculano, que não gostava da Academia, aproveitou a deixa para uma crítica mordaz e antológica: no seu A Dama Pé-de-Cabra, das Lendas e Narrativas, elegeu um onagro (uma espécie de jumento) como seu instrumento de vingança: “O onagro fitou as orelhas e, em sinal de aprovação, começou a azurrar; começou por onde, às vezes, academias acabam”. Quando essa mesma Academia, em 1976, publicou uma nova edição do volume do A, deve ter respirado aliviada ao acrescentar no final da lista o providencial azuverte, uma ave do Timor…

Houaiss, como cavalheiro que era, abandonou essa prática truculenta da tradição lexicográfica, mas não a de aproveitar o trabalho dos colegas. Sabia que todo dicionarista precisa apoiar-se nos ombros de seus antecessores: a lexicografia tem a aparência de uma interminável pirâmide humana (ou dicionárica, como ele diria). No mesmo artigo de 1975 em que elogia Aurélio, Houaiss declara abertamente que o novo dicionário, classificado de “médio ou inframédio”, era um passo básico, “precioso”, para chegar ao “grande” dicionário, que ainda estava por ser escrito; em seguida, abre o jogo e descreve como deveria ser essa obra — e ali está, em detalhes, o dicionário que agora foi lançado e que leva o seu nome.

3 — Houaiss era um predestinado para a lexicografia. Seu nome sempre esteve ligado a enciclopédias e dicionários. Organizou a Enciclopédia Delta-Larousse e a Mirador-Internacional; trabalhou no Novo Dicionário Barsa Inglês-Português, no Dicionário Koogan-Larousse, no Webster Inglês-Português, bem como na elaboração do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP), publicado pela Academia em 1981. Em 1985 conseguiu reunir recursos para começar os trabalhos, interrompendo-os 7 anos depois; só em 1997 conseguiu iniciar a segunda fase, que levou o dicionário até o prelo. Houaiss morreu em 1999, a poucos passos da Terra Prometida, mas tinha levado a cabo o projeto de uma vida inteira passada no convívio com as palavras. Não as olhava, entretanto, com essa maneira particular dos poetas ou dos escritores; olhava-as como um entomólogo olha os insetos, exatamente com aquele mesmo olhar classificatório, organizatório, quase obsessivo, que prenuncia o lexicógrafo. A grande obra que escolheu para traduzir do Inglês foi, não por acaso, o tão decantado e tão pouco lido Ulysses, de Joyce. “Foi um erro de Joyce encastelar-se no romance; eram as palavras o que lhe interessava”, disse Borges, na Argentina, sem suspeitar que sua frase, aqui, do outro lado da fronteira, servia como uma luva no Houaiss tradutor. Seus detratores (entre eles, Paulo Francis e Millôr) afirmavam que Joyce traduzido por Houaiss só podia resultar mesmo num monstrengo ilegível; eu não conheço a tradução, já que há muito me permito o luxo de só ler os autores que me dão prazer. Do que li de Houaiss, contudo, não tive boa impressão; ele não se saía muito bem quando juntava palavra com palavra. Seu texto é duro, entrecortado, retorcido, difícil de ler, não raro pedante, que revela, no entanto, um prazer incontido na enumeração rebuscada, na pesquisa lexical, no gozo da palavra por si mesma. Em seu livrinho sobre a cerveja, que devia ser ameno, olhem o tijolaço que ele escreve sobre as mesas e os tira-gostos:

“Em ambientes fechados, as mesas cervejeiras tendem a ser, se de madeira ou de metal, sólidas e robustas. Se em ambientes abertos, primaveris, veranescos, estivais, jardinais, as mesas, quase sempre metálicas (nem de vime se usam), são levitantes, o mesmo acontecendo com as cadeiras, para que, não abrutadamente, o bibente se balanceie. […] A cerveja se sente bem com salmourados, avinagrados, defumados, embutidos, salados, enfriados e uma série de ados. Mas não se trata de consumo intenso, é claro, pois que o consumidor já veio adequadamente alimentado para a mesa cervejal. Em fim de festa, primaziando certos mitos, poderá ir até um chucrute” (A Cerveja e seus Mistérios. Rio de Janeiro, Salamandra, 1986)

4 — Muitos dos dicionários na minha estante foram editados em dois volumes: o Viterbo, o Lacerda, o Morais, o Cândido Figueiredo, o Caldas Aulete; era o formato preferido no passado. A partir do sucesso do Pequeno Dicionário Brasileiro, nos anos 50, foi ficando claro que o mercado queria mesmo um bom dicionário de um só volume. Aurélio tinha material para um dicionário muito maior, mas teve de reformular seu projeto para um volume único; a solução foi cortar milhares de verbetes, numa verdadeira “lista de Schindler”, em que ele teve de decidir quem ia para a página impressa e quem ficava na gaveta (e ainda existem, na imprensa, bois-cornetas que criticam o humilde Magri por ter usado um termo que não estava no Aurélio!). O Hou-aiss, até o ano passado, era anunciado como um dicionário de dois volumes; no entanto, um investimento de 9 milhões de reais não admite aventuras mercadológicas, e a Editora Objetiva optou prudentemente pelo volume simples — mas sem cortes. Para que dois pudessem caber em um só, expandiram-se ao máximo os limites físicos: a letra diminuiu, a página aumentou de tamanho, o papel utilizado é finíssimo, mas de alta qualidade, e a encadernação foi reforçada para permitir um volume mais grosso. O resultado, tenho de confessar, é impressionante! É um livro lindíssimo, com uma impressão e uma diagramação magníficas. São 3.000 páginas e 228.000 verbetes, contra as 2.150 páginas e os 160.000 verbetes do Aurélio-XXI! Dá para ver, entretanto, que ele chegou ao limite da edição em papel; se posteriores edições receberem acréscimos, isso só poderá ser feito com o sacrifício de algum material já impresso. Não cabe mais nada! O futuro de sua expansão está na edição eletrônica; no formato de livro, só se for em dois volumes, pois o peso do atual já desafia leitores com menor preparo físico.

Para aproveitar ainda mais o espaço, foi empregado um sem-número de abreviaturas e abreviações (Houaiss distingue umas das outras; pudera não…); a maioria delas passará despercebida do leitor que vai em busca das informações de sempre (significado, etimologia, grafia, etc.), mas será de extrema utilidade para leitores especializados. Além disso, este dicionário não traz abonações de autores consagrados, porque isso implicaria aumentar o texto em quase 20%. O Aurélio traz, e eu gosto; o Houaiss, no entanto, prefere apresentar exemplos que esclareçam o leitor quanto ao uso do vocábulo em suas várias acepções. A prática, comum a vários dicionários estrangeiros, não torna o verbete menos útil.

Além de um maior número de verbetes, era de se esperar que um dicionário concebido pelo enciclopédico Houaiss trouxesse maior quantidade de informação sobre cada vocábulo — e assim é. Em homenagem à Semana Farroupilha, escolhi o vocábulo mate; vejam o verbete no Aurélio-XXI e no Houaiss, respectivamente 1 e 2:

1 — mate — [Do quíchua mati, pelo esp. plat. mate.] S. m. 1. Bot. Erva-mate. 2. As folhas dessa árvore, secas e pisadas. 3. A bebida feita com a infusão dessas folhas assim preparadas; chá-mate. Mate chimarrão. Bras. 1. O que se toma sem açúcar. Mate de armada curta. Bras. RS 1. Mate quentíssimo, a ponto de queimar a boca.

2 — mate s.m. (1817) — 1 árvore de até 10m (Ilex paraguaiensis) da fam. das aqüifoliáceas, nativa da América do Sul, de flores pálidas, em cimeiras axilares, bagas globosas e folhas coriáceas, us. no preparo do chimarrão e, após torrefação, em chá tomado quente ou geralmente gelado, como é muito popular em quase todo o Brasil, com propriedades tônicas, estimulantes e diuréticas [sin.: caá, caaeté, chá-dos-jesuítas, chá-mate, congonha, congonha-mansa, congonha-verdadeira, congonheira, erva, erva-mate, mate-do-paraguai, pau-de-erva] 2 as folhas dessa planta, depois de secas. 3 bebida preparada com a infusão dessas folhas; chá-mate. mate chimarrão B aquele que é bebido sem açúcar. mate de armada curta RS aquele que é servido muito quente, queimando os lábios e a língua. ETIM esp. mate (1570) ‘cabaça vazia para vários usos domésticos, particularmente, para tomar erva-mate’, (1740) ‘infusão da erva-mate’, der. do quích. mati ‘cabacinha’

Que tal? O verbete nos dá várias informações sobre a planta, sobre as propriedades da bebida e sobre os seus vários sinônimos; além disso, não poucos leitores vão se surpreender ao ver que o vocábulo teve seu uso alterado dentro do próprio Espanhol, de onde nos veio: no séc. XVI, indicava o mesmo que no Quíchua — cabaça ou cuia; é a partir do séc. XVIII que passa a designar também a bebida que nela se toma. O que podemos querer mais de um dicionário?

Nesse verbete ficam evidentes duas grandes atrações do novo Houaiss: a datação e a etimologia. Sempre que for possível, ele indica a data da primeira ocorrência impressa do vocábulo (e de suas posteriores significações, se houver) e esclarece sua etimologia, com base no incomparável Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, do filólogo português José Pedro Machado. Friso que, desde a 1a. fase, Houaiss contou com a colaboração do também falecido Antônio Geraldo da Cunha, autor do Dicionário Etimológico Nova Fronteira e do Dicionário Histórico das Palavras Portuguesas de Origem Tupi.

Numa longa seção pré-textual de 25 páginas em corpo 7 miudinho, intitulada Detalhamento dos verbetes, Mauro Villar, o atual responsável pelo projeto, apresenta a profissão de fé do dicionário, descrevendo, para quem quiser ver, todas as decisões editoriais e lexicográficas que foram tomadas. Ao ingressarmos nessa seção, entramos no ventre da baleia. O eitor especializado vai encontrar aí os andaimes dos verbetes, expostos com impressionante riqueza de minúcias; o leitor comum, entretanto, só deveria aventurar-se nesse cipoal em caso de real necessidade. Nessas páginas também aparece uma breve definição dos princípios gramaticais adotados; não cabe aqui discuti-los, mas, em atenção a meus leitores, posso assegurar que, se não são exatamente a última palavra no assunto, ao menos não chegam a comprometer.

Só achei estranho — pois não é que não me agüentei e já resolvi iniciar os ataques? — o descabido destaque que deram a Rebelo Gonçalves na matéria do plural dos compostos. Ele foi um erudito filólogo português, ortógrafo de respeito, mas completamente desatualizado em matéria de Morfologia. Na medida em que esqueceram de consultar Celso Pedro Luft, que traz, a meu ver, a lição mais lúcida sobre o problema, deixaram de enxergar a fundamental distinção entre substantivos e adjetivos compostos; em conseqüência, o dicionário tropeça ao indicar, no verbete surdo-mudo, a mesma flexão para o adjetivo e para o substantivo. Ora, quando surdo-mudo é substantivo, variam todos os elementos flexionáveis: o surdo-mudo, a surda-muda, os surdos-mudos, as surdas-mudas; quando é adjetivo, varia, como em qualquer adjetivo composto, apenas o segundo elemento: menino surdo-mudo, menina surdo-muda, meninos surdo-mudos, meninas surdo-mudas).

Mesmo sem a edição em CD, que me permitiria fazer uma pesquisa mais abrangente, fui testar o Houaiss em alguns itens em que o Aurélio-XXI tinha me desapontado. Como eu já esperava, o novo dicionário, mais recente e muito maior, é também muito mais completo. Não estão no Aurélio, mas estão no Houaiss, agropastoril, agronegócio, antipessoal, apagão, biofertilizante, biopirataria, cartelização, cartolagem, clubística, conspiratória eletroeletrônica, fitossanitário, flamenco, gabaritar, hidroginástica, meritocracia, parquímetro, soropositivo. Para aqueles que pensam que só as palavras que estão dicionarizadas têm direito a existir, informo que nenhum dos dois registra agroexportador, antimotim, antiestatizante, autolimpante, bivolt, bloqueto, civilizatória, degravação, drogadito, drogadição, intensivista, mecatrônica, rinsagem.

Outros casos, encontrados aqui e ali no Houaiss: (1) Vejo que ele registra corretamente eletrocussão (com SS); enquanto Aurélio viveu, assim estava no seu dicionário; depois, seus amanuenses trocaram para eletrocução. (2) Houaiss também prefere clitóris, como fazia Aurélio-vivo; o Aurélio-XXI aconselha um absurdo clitóride (ainda por cima, feminino!). (3) Ao definir cotio, Aurélio ignora o sentido mais geral do vocábulo, “aquilo que cozinha facilmente” — daí falar-se em “feijões cotios”; Houaiss, preciso, registra este significado e o dá como dominante. (4) Apesar de ser um tanto fescenino o exemplo, advirto que, ao contrário do mestre Aurélio, o mestre Houaiss não confundia cunete e minete. (5) O Houaiss é o primeiro dicionário em âmbito nacional a registrar o nosso brigadiano: “RS qualquer componente da força policial”. (7) Aurélio preferia xerox com a tônica no E (/xérocs/); Houaiss, acertadamente, recomenda a tônica no O (/xerócs/) — ou seja, oxítona, como todos os vocábulos em X que ingressaram no Português depois da 2a. Guerra (pirex, inox, gumex, jontex, etc.). E assim por diante.

Se não confiasse o suficiente na agudeza de meus leitores, eu poderia ter medo de ser mal compreendido; tenho certeza, no entanto, de que todos perceberam que os casos acima relacionados depõem contra o Aurélio exatamente porque eu os havia listado como pontos discutíveis naquele dicionário, meu companheiro de anos. Embora eu tenha certeza que o meu convívio com o Houaiss há de gerar uma lista semelhante, não hesito, no entanto, em afirmar taxativamente que entramos em nova etapa na lexicografia brasileira. O Rei Aurélio está morto; viva o Rei Houaiss!

Depois do Acordo:

conseqüência > consequência

lingüística > linguística

aqüifoliácea > aquifoliácea

agüentei > aguentei