O pesadelo de Cassandra continua [4° de 10]

Assim como Cassandra previa as desgraças, mas ninguém acreditava nela, assim eu berro o quanto posso contra o descabido Acordo Ortográfico. Muita gente deve ter saído do capítulo anterior desta novela com o olho arregalado ao perceber que o Acordo, anunciado como o paladino da unificação ortográfica entre o Novo e o Velho Mundo, não passa de um inofensivo tigre de papel. Peço permissão para repetir aqui os trechos que apresentei como exemplo da falta de unidade que existe hoje entre os dois países:

“Como noticiámos ontem, o facto mais pitoresco da semana foi o bebé raptado pela hospedeira da Air France. Depois da descolagem, a torre de controlo, avisada por telefonema anónimo, obrigou o piloto a fazer uma aterragem forçada” (Portugal);

“Como noticiamos ontem, o fato mais pitoresco da semana foi o bebê raptado pela aeromoça da Air France. Depois da decolagem, a torre de controle, avisada por telefonema anônimo, obrigou o piloto a fazer uma aterrissagem forçada” (Brasil).

São oito divergências em tão poucas linhas! É a deixa para os defensores do acordo: “Basta! Se usamos o mesmo idioma, vamos escrevê-lo da mesma forma! Que venha a reforma — e já!”. Ora, é importante que meu bom leitor fique sabendo que as oito diferenças apontadas acima vão permanecer, mesmo que nos empurrem a “nova ortografia” goela abaixo. Vou dividir essas diferenças em três grupos, para maior comodidade de explanação.

Em primeiro lugar vêm as diferenças morfológicas: descolagem (decolagem), controlo (controle) e aterragem (aterrissagem) são variantes permitidas na estrutura do nosso léxico, da mesma forma que, entre muitos outros, patinagem (patinação), equipa (equipe), camião (caminhão), chuto (chute), aguarela (aquarela), altifalante (alto-falante), canadiano (canadense), bolseiro (bolsista), transplantação (transplante), fumar (defumar; um brasileiro ficaria perplexo se ouvisse que “Os índios costumavam fumar o peixe que pescavam”…). As escolhas feitas por Portugal já estão consolidadas, da mesma forma que as nossas, que coloquei entre parênteses — e não serão alcançadas por uma simples reforma ortográfica, a qual, como muita gente esquece, só pode regular o emprego das letras, dos acentos e dos sinais.

Em segundo lugar, vêm as diferenças lexicais. Assim como hospedeira de bordo e aeromoça, existem centenas de outros casos em que os dois países adotaram palavras diferentes para denominar a mesma coisa. Exemplos bem significativos, porque extraídos do quotidiano, são talho (açougue), claque (torcida), jante (aro de roda), travão (freio), biberão (mamadeira), tablier (painel do automóvel), mãos-livres (viva-voz), barbatana (pé-de-pato), berma (acostamento), penso higiénico (absorvente íntimo) penso rápido (bandeide), ecrã (tela de TV ou de cinema), agrafador (grampeador). Nossos irmãos do outro lado do Atlântico afagam o cimento do piso (alisam, nivelam) e assistem a retrospectivas de filmes dos impagáveis Bucha e Estica — para nós, o Gordo e o Magro.

Em terceiro lugar — e já não era sem tempo! — vêm as diferenças ortográficas: noticiámos (noticiamos), facto (fato), bebé (bebê) e anónimo (anônimo). Os burocratas dos dois países esfregam as mãos, exultantes: “Agora sim! Aqui, entramos nós! Agora vocês vão conhecer a força do carvão de pedra!” — mas nada acontece, pois, com uma espantosa e inexplicável atitude salomônica, o texto do Acordo permite que cada país conserve muitos de seus hábitos particulares, sem mudar um níquel! Portugal continuará a marcar com acento a 1ª pessoa do plural do pretérito perfeito (noticiámos, amámos, encontrámos), como sempre fez. O timbre do “e” e do “o” tônico das oxítonas fica a critério do falante: bebé (bebê), bidé (bidê), caraté (caratê), guiché (guichê), cocó (cocô — os portuguesinhos fazem cocó na fralda). O “c” de facto vai continuar ali onde está, pois o léxico dos portugueses distingue entre o facto (fato, acontecimento) e o fato, que significa “traje” (na verdade, o pai da nossa fatiota). Lembre, caro leitor, que lá na terra de Eça um fato-macaco é o que chamamos aqui de macacão — e se alguém pode rir, não somos nós, pode ter certeza; experimente declarar, numa roda de amigos portugueses, algo como “Por sorte eu sempre levo um macacão velho na mala do carro” ou “Minha filha passou todo o fim de semana com aquele macacão sujo”…

Por fim, o timbre das vogais tônicas “e” “o” (sempre elas!) das proparoxítonas também fica à vontade do freguês: anónimo (anônimo), efémero (efêmero), António (Antônio), fenómeno (fenômeno). Cá para nós: podemos acusar de tudo este Acordo, mas que ele é democrático, ah, isso ele é! E as mudanças, caro leitor? Onde estão elas? Veremos na próxima coluna.

[publicado em 05/07/2008 — A Reforma entrou em vigor em 2009 e veio confirmar tudo o que está escrito neste artigo, inclusive as críticas]