Não compre o novo VOLP (final)

Como adiantei na coluna anterior, o gigantesco equívoco do novo VOLP reside na maneira como seus autores interpretaram as regras do hífen do Acordo Ortográfico. Não esperávamos que eles solucionassem definitivamente as dificuldades que cercam este danado sinalzinho porque sabemos que é tarefa impossível; não importa quantas reformas venham a ocorrer nos próximos mil anos: sempre vai haver indecisão quanto ao hífen porque ele se apoia no terreno eternamente movediço que marca o limite entre a Morfologia e a Sintaxe, o limite entre o vocábulo e a locução. Explico melhor.

Desde o momento em que aprendemos a ler, sabemos reconhecer os vocábulos de uma linha escrita a partir de um simples critério visual: basta contar os  segmentos que estão separados por espaços em branco. Este critério, essencialmente prático, foi consagrado por muitos séculos de tradição gramatical, desde que se compuseram os primeiros dicionários. No caso de um vocábulo composto — produto da união de dois vocábulos já existentes no idioma —, cabe ao hífen assinalar o fato de que aquelas duas entidades, normalmente separadas, estão ali como partes constitutivas de um todo. É por isso que o hífen também se chama de traço-de-união; sua presença confirma nossa definição inicial de vocábulo como uma inscrição em cujos lados — tanto o esquerdo quanto o direito — existe uma interrupção do texto escrito.

O espaço separa, o hífen une. Se leio mesa redonda, o espaço me avisa de que estou falando de uma determinada mesa, de forma redonda (nem quadrada, nem retangular). Se leio mesa-redonda, porém, o hífen me informa de que se trata de um composto, um substantivo que designa “discussão ou conferência em que todos aqueles que dela participam estão em pé de igualdade”. No primeiro caso, dois vocábulos formam um sintagma (ou locução); estamos no terreno da Sintaxe; no segundo, os vocábulos se uniram para formar um novo vocábulo (estamos no terreno da Morfologia).

Pois este é o fator que complica o uso do hífen: quando é que um sintagma passa a ser um substantivo composto? Em que momento saímos da Sintaxe (vários vocábulos) e entramos na Morfologia (um só vocábulo)? Por que papel crepom e papel celofane são vistos como locuções, enquanto papel-bíblia e papel-carbono são compostos? Por que muitos gramáticos escrevem ponto e vírgula como três vocábulos separados, ao contrário do preferível ponto-e-vírgula, como uma unidade? Há vários “palpites” sobre como se poderia fazer esta diferenciação, mas acho que nunca chegaremos a uma resposta definitiva — não por deficiência das teorias ou incompetência de nossos estudiosos, mas exatamente pela natureza difusa do problema. Não se poderia exigir do VOLP, portanto, que fizesse o que ninguém fez (ou fará).

O pecado mortal da comissão da ABL foi a interpretação desastrada da regra que dispõe que o hífen deve ser usado “nas palavras compostas por justaposição que não contêm formas de ligação”. Imagino que esta espantosa imprecisão terminológica (o que é “justaposição”, aqui? E o que seriam essas “formas de ligação”?) tenha colaborado para o equívoco, mas nossa Academia deveria ter sido mais prudente e solicitado a ajuda dos “universitários” (dos professores, é claro).  O Acordo parece estar fazendo apenas uma referência capenga a um princípio que sempre foi observado: não há hífen quando existe um fonema de ligação, como em natimorto, setissílabo, alvinegro (comparem com rubro-negro), avifauna, clarividente, etc. Nossa comissão, todavia, numa visão muito particular, entendeu por “forma de ligação” qualquer preposição ou  conjunção que estivesse entre os elementos do vocábulo composto e retirou, à moda galega, o hífen de pé-de-moleque, fora-da-lei, diz-que-diz e dezenas de outros. Embriagados de tanta audácia, nossos heróis não pararam aí e estenderam a regra para qualquer composto com mais de dois elementos — inclusive as frases substantivadas (tomara-que-caia, deus-nos-acuda, etc.). Estava instituído o caos: usamos hífen nos compostos de dois vocábulos para distingui-los das locuções (cachorro-quente não é um “cachorro quente”; meio-dia (12h) não é “meio dia”) — mas isso deixa de ser necessário nos compostos maiores? E pé-de-pato e “pé de pato”? E faz-de-conta e “faz de conta”? Numa “Nota Explicativa” constrangedora, a comissão alega que o contexto suprirá a ausência do hífen, o que pode ser verdade em algumas frases, mas em outras não, numa casuística que é  o contrário do que se espera da ortografia. O pior, porém, foi a criação de um absurdo lexicográfico que vai entrar para a História: o substantivo que contém espaços em branco! Os futuros brasileirinhos vão aprender que maria vai com as outras — assim, com minúscula no nome próprio, com verbo conjugado, etc. — é um substantivo? Mas é de amargar!  A ABL deve admitir seu equívoco e voltar atrás, antes que se perca o pouco prestígio que ainda lhe resta.

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