Argélia ou Algéria?

Um leitor pergunta por que nós escrevemos “Argélia”, quando o mundo todo parece preferir “Algéria”. A explicação é histórica: quando o mundo optou pelas formas francesas, “Alger” e “Algérie”, nosso léxico já usava “Argel” e “Argélia” há muito tempo.

No mês da Copa, nada mais natural que este desfile feérico de times e torcedores estrangeiros acabasse despertando dúvidas nos leitores desta coluna. A primeira questão foi uma provocação bem-humorada que nosso amigo Leo Iolovitch publicou em sua página no Facebook (para quem ainda não se deu conta, o Face não serve apenas para postar fotos de pratos de comida ou de gatinhos se espreguiçando): “Em todo o mundo se escreve Algéria, nós escrevemos Argélia. Acho que é coisa do Hortelino Trocaletra. Consulto os universitários e os professores universitários”.

O que houve? Nada de mais. Essas variantes na forma dos topônimos podem parecer estranhas ao nosso olhar, acostumado ao mundo globalizado do noticiário da TV, mas são extremamente comuns quando se trata de lugares descobertos ou visitados há centenas de anos. Nossos antepassados interpretaram à sua moda os nomes estranhos que ouviram ― friso: apenas ouviram, porque a escrita, geralmente em alfabetos exóticos, não entrava aqui em cogitação ― e assim fixaram-se certos nomes que destoam dos que são utilizados por outros países. Said Ali, em seu brilhante ensaio Nomes Próprios Geográficos, não fala da Argélia, mas menciona centenas (literalmente) de exemplos de nomes vindos do Alemão, do Francês, do Espanhol e de várias línguas asiáticas que apresentam discrepâncias semelhantes.

No caso do Português (e, em amplitude menor, no Espanhol), devemos também levar em conta que nossos navegadores, por chegarem primeiro a diferentes partes do globo, introduziram no idioma formas que ainda não existiam em nenhuma outra língua. Quando o mundo optou pelas formas francesas, Alger e Algérie (muito mais fiéis, façamos justiça, ao nome árabe), nosso léxico já usava Argel e Argélia há muito tempo. Não haveria razão alguma para mudarmos ― até mesmo porque seria um trabalho insano tentar uniformizar a maneira como as diferentes línguas adaptam esses nomes. Só no norte da África, a Argélia, a Tunísia e o Marrocos já encabeçam uma lista infindável: no Espanhol,Argelia, Túnez e Marruecos; no Inglês, Algeria, Tunisia e Morocco; no Francês, Algérie, Tunisie e Maroc

João de Barros, em suas Décadas da Ásia (1552), já menciona Argel e Tunes. No século seguinte, Francisco Manuel de Melo, Rodrigues Lobo e o incomparável Padre Vieira só usam Argel. Rafael Bluteau, no seu famoso dicionário (que é do início do séc. 18), deixa bem claro que esta diferença era consabida e consagrada por estas bandas ao registrar: “Alger – cidade de África. Vide Argel“.

No romance As Meninas, Lígia Fagundes Telles se inspira nessa troca de letras para produzir um feliz anagrama: ao ficar sabendo que o namorado, preso político, está incluído no grupo que vai ser libertado e enviado para a Argélia, uma das protagonistas devaneia: “Com a ponta do dedo, ao invés de Argélia, escreveu Algéria, pensando em Alger. No vidro esbranquiçado pelo hálito, se transferisse o “e” para junto do “l”, Algéria ficaria sendo alegria“.

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