Expurgar o dicionário do lado “ruim” das palavras, retirar do verbete as acepções depreciativas de cigano, como quer o procurador, implicaria apagar uma parte da nossa história, fechando a possibilidade de entendermos determinadas posturas que nossa sociedade assumiu ao longo do tempo, por mais condenáveis que elas possam parecer ao observador de hoje.
Na coluna anterior, manifestei minha apreensão diante da absurda hipótese de vermos o Houaiss censurado por força de uma ação do Ministério Público Federal, que enxergou um “claro caráter discriminatório” na redação do verbete cigano daquele dicionário. Como o assunto é muito sério — talvez muito mais do que pareça, à primeira vista —, prometi que a ele voltaria, promessa que agora vou cumprir.
Como vimos, há um equívoco fundamental no raciocínio que embasa esta ação. Para seu autor, procurador federal de Uberlândia, o dicionário seria uma obra que, “pela própria natureza, encerra um sentido de verdade” — e que, portanto, ao incluir no verbete significados depreciativos como cigano velhaco e trapaceiro, estaria demonstrando uma “postura preconceituosa e discriminatória” contra aquela injustiçada etnia.
Ora, isso é ignorar supinamente a natureza de um dicionário como o Houaiss (ou como o Aurélio, o Aulete ou o Michaelis), que é, como dizem os alemães com seus imponentes vocábulos, um Sprachwörterbuch (dicionário de palavras, também conhecido como dicionário de língua), e não um Sachwörterbuch (dicionário de coisas). Um dicionário de língua não tem a pretensão de definir o que as coisas são, mas de relacionar o que as palavras significam (ou melhor, relacionar os significados que brasileiros e portugueses atribuíram a cada vocábulo ao longo do tempo). E é exatamente por fazer isso que um bom dicionário constitui a chave indispensável para abrir as portas da tradição, pois nele estão registradas as marcas que nossa história social e cultural vem deixando nas palavras desde o primeiro texto que se escreveu em língua portuguesa.
Pois a palavra cigano, além de designar o povo propriamente dito, pode ter vários outros empregos. “É uma nossa-senhorazinha, é uma cigana, é uma coisa/Que me faz chorar na rua, dançar no quarto”, diz o poema de Vinícius, falando de uma doce namoradinha — e para que possamos entender a intenção do poeta, o dicionário nos informa que cigana pode designar uma pessoa graciosa, sedutora. “Tornar-me-ia de novo meio cigano, meio selvagem, andaria numa corrida vagabunda pelas fazendas sertanejas”, diz Graciliano Ramos — e devemos saber que termo aqui se refere a uma vida errante e solitária. “E se te aparecem uns valdevinos, uns vagabundos, uns ciganos, se te assaltam e roubam, se te matam”, escreve Saramago — agora se referindo a indivíduos perigosos, ladrões e malfeitores. “Emília sempre fora interesseira…virou uma perfeita cigana, dessas que não fazem nada de graça” — e descobrimos, com Monteiro Lobato, que o vocábulo também foi empregado como sinônimo de “avarento, pão-duro”. Para minha saudosa avó, embalada pelas novelas da Rádio Nacional na década de 50, a palavra cigano sempre evocou um povo romântico e passional, fanático por casamentos, que dançava em volta das fogueiras ao som de violinos (no vocabulário dela, o povo suspeito de sequestrar crianças e roubar cavalos não eram os ciganos, mas os “beduínos”; eu e meus primos éramos avisados para tomar cuidado, quando havia “beduínos” na cidade…).
Pois todos esses diferentes significados precisam ser enumerados, explicados, apresentados em ordem de importância e — como fez o Houaiss, tecnicamente impecável —, classificados com rótulos de uso que alertem o consulente para isso só se usa no Sul do país, aquilo é estritamente informal, aquiloutro tem valor pejorativo, e assim por diante. Expurgar o dicionário do lado “ruim” das palavras, retirar do verbete as acepções depreciativas de cigano, como quer o procurador, implicaria apagar uma parte da nossa história, fechando a possibilidade de entendermos determinadas posturas que nossa sociedade assumiu ao longo do tempo, por mais condenáveis que elas possam parecer ao observador de hoje. Locais religiosos como sinagoga e pagode já foram empregados com o significado de “confusão, balbúrdia”; xiita, que é uma das correntes mais respeitadas do Islã, é usado com o sentido genérico de “radical” (uma vegetariana xiita); missa pode designar uma tarefa interminável (Foi uma missa!); gaúcho já foi sinônimo de “vagabundo”; coronel pode designar aquele que sustenta mulheres; judeu aparece às vezes com o sentido de usurário — e tudo isso deve constar no dicionário, seja para esclarecer o significado do texto, seja para deixar registrados os preconceitos do passado. Suprimir estas informações do dicionário seria iniciar aquele apavorante revisionismo linguístico que, como Orwell já anunciava em seu profético 1984, sempre foi e sempre será uma característica de todos os regimes totalitários.
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