1 — Todos sabem (ou deveriam saber) que os árabes, na sua permanência de sete séculos na Península Ibérica, contribuíram para o léxico do Português e do Espanhol com centenas de vocábulos. Como já mencionei no artigo sobre o Alcorão, um grande número dessas palavras começa pela letra A: almôndega, alfândega, almofada, açougue, açúcar, açude, aldeia, alface, algema, algodão, alicerce, alvará, alquimia, arrabalde, alfaiate, arroz, azeite, entre muitas outras. Acontece que al era o artigo definido do Árabe; nossos antepassados simplesmente incorporaram essa partícula nas palavras que ouviam, sem ter a consciência de sua natureza de artigo. Isso fica claro quando comparamos nosso “A çúcar” e nosso “AL godão” com o sugar e o cotton do Inglês, o sucre e o coton do Francês, e o zucchero e o cotone do Italiano, línguas que nunca estiveram em contato direto com os povos árabes.
2 — O artigo al acompanha todos os substantivos, não importa o gênero ou o número. Normalmente as palavras que fomos buscar em outras línguas não vieram acompanhadas de seu artigo; entretanto, o al árabe é mais “colado” ao vocábulo seguinte do que o artigo nas línguas ocidentais. Não é possível, por exemplo, inserir entre ele e o substantivo qualquer outro vocábulo, como fazemos em nosso idioma: o [teu] livro, o [único] livro, o [décimo] livro, etc. Além disso, o L final deste artigo pode ser modificado para haver harmonização fonética com a consoante que inicia o vocábulo seguinte (ar-ruzz, arroz; az-zayt, azeite), o que vai reforçar, para quem ouve, a idéia de que ele faz parte da palavra; não admira, portanto, que nossos antepassados não reconhecessem o al como vocábulo independente. Não vale acusá-los de ignorantes: dizer “o Alcorão” (de al-Quran, “o Corão”) não é a mesma tolice que anunciar uma música com “os the Beatles”.
3 — Depois do Latim e do Grego, o Árabe foi a língua que mais contribuiu para a formação de nosso vocabulário básico, contribuindo em áreas tão diversas quanto as ciências exatas, a administração pública, a agricultura, a pecuária, a arquitetura, os móveis, o luxo e o conforto — como podemos avaliar pelas palavras abaixo, iniciadas por outras letras que não o indefectível “A“:
4 — Veja, abaixo, a origem de alguns vocábulos importantes para nós:
álgebra — vem de al-jabr, a arte de reunir ossos quebrados ou deslocados. Seu ingresso no mundo da matemática se deu com o livro Al-jabr w’al muqabalah, publicado em 825 D.C., pelo matemático árabe Al Khwarizmi (de onde nos veio, também, o vocábulo algarismo). As palavras jabr e muqâbalah foram usadas para designar duas operações básicas para resolver equações. “Jabr” (“colocar no lugar”) refere-se à transposição de termos subtraídos de um lado da equação para o outro: x-2=12 torna-se x=14; o lado esquerdo foi “consertado, restaurado”. “Muqabalah” (“cancelar”) refere-se ao equilíbrio entre os dois lados da equação, obtido quando “cortamos” os termos iguais: x+y=y+7 torna-se x=7. Ou, como resumia Behâ Eddîn, em 1600: “O membro com um sinal negativo torna-se positivo e é acrescentado ao outro membro: isso é al-jabr; os termos homogêneos e iguais então serão cancelados: isso é al-muqâbala.”
Para ninguém dizer que estou delirando, o significado não-matemático de al-jabr ingressou também no Espanhol, em que se chamava de algebrista o cirurgião-barbeiro especializado em remendar ossos quebrados ou luxados, como se pode ver no D. Quixote, de Cervantes.
arroba — vem de ar-rub, “a quarta parte”, porque correspondia à quarta parte de um quintal, outra medida antiga. Sua equivalência em quilogramas e em litros varia muito, dependendo da região e dos materiais medidos. Em geral, nos países de língua espanhola ela vale algo como 11,5 kg, enquanto no Brasil e em Portugal equivale a 14,79 kg, sendo usada no comércio de carne bovina com o valor arredondado para 15 kg. Como nas transações comerciais era usado o símbolo “@” para representá-la, este ficou sendo, nos países ibéricos, o nome do sinal usado mundialmente nos endereços eletrônicos.
almanaque — há diversas hipóteses para sua origem, mas duas são as mais difundidas. A mais sóbria diz que vem de al-manaj, “o círculo dos meses”; manaj parece ser a arabização do vocábulo latino manacus, que designava o círculo do relógio solar que marca a sucessão dos meses — o que combina com a finalidade primordial dos almanaques, que sempre foi a de publicar o calendário com as estações, a lunação, os eclipses, etc. A outra hipótese, muito mais imaginativa, também passa pelos árabes: o vocábulo viria de al-manah — “lugar onde se pára numa viagem”, “estação de parada”, “local onde o camelo descansa”, referindo-se às doze “paradas” que a Terra faria no seu trajeto ao redor do Sol, nas casas do Zodíaco (era assim, na cabeça dos antigos) e lembrando, ao mesmo tempo, o local onde os condutores de caravanas paravam para descansar e trocar entre si notícias, histórias curiosas e fatos pitorescos, bem ao modo dos almanaques modernos. Há quem diga que esta é uma hipótese de maluco …
álcool — vem de al-kohl, o nome de um fino pó de antimônio que as mulheres orientais usam até hoje como maquilagem nos olhos. Esse pó escuro, que Júlio César deve ter visto embelezando os olhos de Cleópatra, era tão fino que não era perceptível a quem o esfregasse entre os dedos. O vocábulo entrou em nossa língua para designar qualquer pó que, como o kohl, fosse obtido pela vaporização de um sólido e por sua posterior condensação; a partir do séc. XVII, passou naturalmente a abranger o produto da destilação do vinho e, mais tarde, da cana.
azar — vem de az-zar, “flor”, na verdade significando “dado” ou “jogo de dados”, porque os dados tinham a figura de uma flor onde hoje temos o “seis”. Pela ligação óbvia do dado com a idéia de probabilidade, o termo passou a indicar o elemento imprevisto nos acontecimentos. Embora abrangesse tanto a boa quanto a má sorte, no Português moderno indica principalmente sorte contrária. Na Espanha, até hoje, chama-se de azahar a flor branca da laranjeira.
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