Embora pareça ser uma especialidade brasileira, PROPINA, como qualquer outro vocábulo tradicional de nosso idioma, sofreu muitas mudanças e acréscimos no seu significado, aqui e além-mar.
Um fiel amigo acaba de voltar da Europa, de onde quase me trouxe um presente. Fiquei muito agradecido pelo quase, não por acreditar naquela conversa fiada de que é a intenção que vale, mas porque ele sacrificou as duas preciosas horas entre um voo e outro, em Lisboa, na tentativa de comprar, para mim, uma garrafa de um bom tinto de Colares. O trânsito estava interrompido por uma estrondosa manifestação de estudantes que protestavam contra o recente aumento no valor das propinas. Para aumentar ainda mais o absurdo da cena, o motorista do táxi virou-se para trás e, como a se desculpar pela bulha que os jovens faziam, declarou: “Eles não deixam de ter sua razãozinha. Vá lá que se pague, mas dentro do bom senso! Essa nova tabela de propinas é um verdadeiro abuso! Um verdadeiro abuso!”. Como o engarrafamento não cedia, meu amigo voltou para o aeroporto sem o meu presente, mas convencido de que a corrupção que grassa em nossa Pindorama é uma herança direta de Portugal, país que chega à perfeição de ter propinas tabeladas! Por sorte, fui eu a primeira pessoa a quem ele expôs essa teoria genética da desonestidade brasileira — primeira e única, porque fiz questão de desmanchar imediatamente esse perigoso mal-entendido.
Ocorre que propina, como qualquer outro vocábulo tradicional de nosso idioma, sofreu muitas mudanças e acréscimos no seu significado. Na Grécia, propinein (de pro, “antes”, e pinein, “beber”) era uma espécie de brinde muito comum nos banquetes, destinado a reforçar os laços entre amigos ou parentes. A cerimônia se dividia três ações sucessivas, sempre na mesma ordem. Por exemplo, numa festa de casamento, o sogro enchia de vinho uma taça especial, geralmente valiosa, bebendo ele próprio alguns goles de seu conteúdo; depois, levantava um brinde à saúde do genro e dava-lhe a taça de presente. O jovem, então, bebia do mesmo vinho que o sogro tinha bebido, a fim de que se estabelecesse entre os dois um vínculo incorruptível de parentesco.
No passo seguinte, em Roma, propinare já não se referia a esse ritual formalizado, mas simplesmente significava “convidar alguém para beber” e, mais tarde, “dar de beber a alguém, ministrar, servir”. É nesse sentido que o verbo aparece na fórmula de exorcismo do tempo do Papa Leão XIII, quando, dirigindo-se ao capeta, o exorcista ordena: “Cesse decipere humanas creaturas, eisque aeterna perditionis venenum propinare” — o que vem dar, em vernáculo, algo como “Deixa de enganar as criaturas humanas e ministrar-lhes o veneno da perdição eterna”. Aliás, é nesse mesmo sentido que nossos escritores do séc. XIX usaram o verbo propinar: “Há envenenamentos propinados por escravos” (Macedo); “Guardai-vos das Circes: prometem prazeres e propinam veneno” (Marquês de Maricá).
No séc. XVIII, o vocábulo propina passou a ser usado para designar a bebida que se pagava a alguém para premiá-lo por um bom serviço prestado, prática que foi simplificada com a simples oferta da quantia correspondente. Nos países de língua espanhola, esse continua sendo o sentido preponderante do vocábulo; dá-se propina ao garçom, ao porteiro do hotel ou ao carregador de malas para recompensar sua eficiência ou sua boa vontade. No Brasil atual, no entanto, criou-se uma curiosa distinção entre o antes e o depois: essa gratificação por um serviço qualquer é chamada de gorjeta, enquanto propina passou a designar o dinheiro que o brasileiro dá antecipadamente a alguma autoridade corrupta para garantir a obtenção daquilo que ele deseja; como invariavelmente se trata de atos ilícitos, o funcionário corrompido cobra sua recompensa antes, para evitar possíveis calotes do corruptor. A classe dos que recebem propina vai ficando tão numerosa que aqui e ali já há indícios de um progressivo aperfeiçoamento da instituição, tais como a emissão de recibo, o registro das propinas auferidas na declaração do Imposto de Renda e o pagamento parcelado por meio de carnê.
Em Portugal, no entanto, propina adquiriu um significado totalmente diferente daquele que tem no Grego, no Latim, no Espanhol ou no PB (Português do Brasil); na terra de Eça e de Camilo Castelo Branco, o termo designa simplesmente as anuidades cobradas pelas faculdades e pelos colégios, sejam privados, sejam públicos (que também são pagos). Várias instituições de ensino divulgam, na internet, o seu “regulamento de propinas“; o estudante bolseiro (que nós chamamos de “bolsista”) está isento de pagar a propina; o Conselho de Reitores fixa o valor da propina — e assim por diante. Os estudantes que meu amigo encontrou nas ruas de Lisboa, portanto, protestavam contra o aumento das anuidades. Era só isso.