Duvido que a maioria da população brasileira conheça a etimologia da palavra trabalho, mas tenho certeza de que todos achariam muito natural se soubessem que ela está ligada, em sua origem, a uma forma antiga de tortura. O termo vem de tripalium (ou trepalium), do Latim Tardio, um instrumento romano de tortura, uma espécie de tripé formado por três estacas cravadas no chão, onde eram supliciados os escravos. Reúne o elemento tri (“três”) e palus (“pau”) — literalmente, “três paus”. Daí derivou-se o verbo tripaliare (ou trepaliare), que significava, inicialmente, torturar alguém no tripalium, o que fazia do “trabalhador” um carrasco, e não a vítima de hoje em dia.
Em 582, o Concílio de Auxerres ainda proibia o sacerdote cristão de permanecer junto “ao trepalium, onde os prisioneiros são torturados”. Pouco a pouco, porém, esse instrumento de tortura foi desaparecendo, cedendo lugar aos terríveis dispositivos inventados pela Inquisição, com sua imaginação de pesadelo. Vão-se os objetos, ficam as palavras: por volta do séc. XII, o termo já tinha ingressado nas línguas românicas — traball, traballo e trabalho (Port.), travail (Fr.), trebajo, trabajo (Esp.), travaglio (It.). Embora na França rural, até hoje, travail ainda sirva para designar uma variante do tripalium — uma estrutura de madeira destinada a imobilizar o cavalo para trocar ferraduras ou efetuar pequenas intervenções cirúrgicas—, em todas essas línguas o termo entrou como substantivo abstrato, significando “tormento, agonia, sofrimento”.
A partir do Renascimento, o vocábulo adquiriu também o sentido atual de “labuta, atividade, exercício profissional”. No entanto, apesar do esforço enaltecedor de comemorações internacionais como o Dia do Trabalho, ou de frases surradas como “o trabalho dignifica o homem“, o termo jamais perdeu sua primitiva ligação com a dor e o sofrimento, reforçada até pela ideologia do Antigo Testamento: o pai Adão, ao ser expulso do Paraíso, é condenado a trabalhar: “No suor do teu rosto, comerás o teu pão”, diz a versão setecentista de João Ferreira de Almeida. Por sua vez, a pena que Eva recebe — “Com dor terás filhos” — está ligada à pena de seu companheiro, pois falamos até hoje no trabalho de parto. Essa, aliás, é a única acepção do travaglio do Italiano; esta língua usa a palavra lavoro para os demais sentidos, derivada de labor, o termo latino para trabalho, de onde também vieram dezenas de palavras nossas, como laboral, laboratório, colaborar, lavra, etc. Não faltam, no Português moderno, outras situações que conservam as associações primitivas do termo. Trabalhoso, em qualquer dicionário, significa “custoso, difícil, cansativo”. Quem está em dificuldades, está passando trabalho. Aquilo que não é fácil de fazer dá muito trabalho, ou muita trabalheira, às vezes até um trabalhão.
Essa visão pejorativa aparece em vários autores anarquistas, para os quais a eventual chegada dos trabalhadores ao poder não elimina a resistência natural do homem ao ato odioso de trabalhar. Alguns iconoclastas querem ver no próprio Marx essa condenação, quando ele afirma, no seu A Ideologia Alemã, que os proletários “devem abolir o trabalho” — passagem que sempre foi acompanhada, nas edições “oficiais” do Partido Comunista, por nota explicando que, mais tarde, em escritos posteriores, Marx teria dito que se referia, na verdade, ao trabalho assalariado.
Mesmo quando invadiu uma língua anglo-saxônica como o Inglês, a palavra conservou essa cor sombria: travail, termo que os britânicos importaram da França, designa também “tormento, agonia”, e pode ser usado com relação ao trabalho de parto. Poucos sabem, no entanto, que dele se criou uma variante bem conhecida por todos os que falam o idioma de Shakespeare: travel, que era usada para designar um esforço penoso e cansativo e que só no séc. XIV veio a adquirir o sentido atual de “viagem”. A cena se repete, e recomeço meu artigo: “Duvido que a maioria da população britânica conheça a etimologia da palavra travel, mas tenho certeza de que todos achariam muito natural se soubessem que ela está ligada, em sua origem, a uma forma antiga de tortura“…