O Brasil se expressa de uma forma tão peculiar que nos permita falar de uma LÍNGUA BRASILEIRA?
O leitor Vanderlei S.T, de Caxias, Rio de Janeiro, vem ressuscitar uma questão há muito sepultada: “Professor, vendo na TV as entrevistas dos jogadores portugueses na Copa, lembrei que o grande compositor Orestes Barbosa, que nos deu o imortal Chão de Estrelas, dizia que não importava quem tinha descoberto o Brasil, porque a língua que falamos é a língua brasileira e não a língua portuguesa. Por que esse assunto não é mais discutido?”.
Caro Vanderlei, não existe uma língua brasileira. Nós falamos a língua portuguesa, da mesma forma que Portugal, Angola, Moçambique e os demais países que integram a chamada comunidade lusófona. O âmago é o mesmo: o sistema flexional é o mesmo, os processos de formação de palavras são os mesmos, o sistema de subordinação é o mesmo, e mesma também é conjugação dos verbos — num quadro similar, mutatis mutandis, ao que acontece com o Inglês, no qual se reconhecem variações britânicas, americanas, australianas e sabe-se lá quantas outras.
As diferenças que existem entre essas variedades, se por um lado ajudam a identificar sua proveniência, são insuficientes para caracterizar um idioma diferente. Um brasileiro diria “Passei a manhã lendo o jornal”, “Te amo”, “Preciso falar com você“; já um português preferiria “Passei a manhã a ler o jornal”, “Amo-te“, “Preciso falar consigo” — mas isso é muito pouco. Na pronúncia, é verdade, o Brasil e Portugal (com sua redução do quadro das vogais) se afastaram muito, o que exige de brasileiros como eu e tu, diante de um programa de TV gerado em Portugal, um esforço inicial para acomodar o ouvido ao novo sistema.
A diferença mais chamativa — e talvez a que mais influa na sensação de que haveria uma língua brasileira autônoma — está no léxico, isto é, nos nomes que damos às coisas. Ora, se isso ocorre mesmo dentro do Brasil, onde uns param no sinal, outros no farol, outros na sinaleira e outros ainda no semáforo, nada mais natural que isso ocorra entre países com realidades tão diversas — ainda mais que Portugal não teve, como nós, a contribuição enriquecedora das línguas indígenas e africanas. A compilação mais completa que conheço foi feita por Mauro Villar, nome assaz conhecido por ser o diretor do instituto que edita (e cultiva) o dicionário Houaiss. Em 1989, depois de passar alguns anos no Velho Mundo, o autor publicou o interessantíssimo Dicionário Contrastivo Luso-Brasileiro, no qual relaciona os vocábulos usados em Portugal e dá o seu equivalente no léxico brasileiro; embora não tenha sido escrito com a intenção de ser cômico, é uma excelente e divertida leitura (a obra está esgotada, mas pode ser encontrada na Estante Virtual, o sebo de todos os sebos.
Ali, por exemplo, podemos enxergar nitidamente a riqueza dos nossos processos de formação de palavras: nossa parada do transporte coletivo lá é paragem; aposentadoria é aposentação; bolsista é bolseiro; canadense é canadiano; a indústria automobilista é a indústria automóvel. O refrigerador é o frigorífico, enquanto o salva-vidas é o banheiro (na minha distante Rio Grande, nós o chamávamos de banhista); o que chamamos de banheiro lá é a casa de banho, prima do nosso quarto de banho. (Friso que esses exemplos e todos os que virão abaixo datam de 1989; se nesse meio tempo houve uma ou outra alteração neste quadro, o número certamente será desprezível).
Há casos em que a lógica que presidiu a formação é a mesma, mas a base escolhida é diferente. Nosso aquecedor é lá o esquentador; os mergulhadores portugueses usam barbatanas onde os nossos usam pés-de-pato; nós pisamos nos freios para frear, eles nos travões para travar. O encanador é o canalizador, e o batedor de carteiras, nosso punguista, lá se chama de carteirista.
Também divergimos da língua onde fomos buscar o vocábulo: nosso concreto lá é betão (do Fr. béton — de onde veio, aliás, a betoneira); a tela é o ecrã (do Fr. écran); o grampo (para grampear papéis) é agrafe (do Fr. agrafe); a mamadeira dos nossos bebês lá é o biberão (do Fr. biberon). Nossa herança indígena e africana nos deu excelentes termos genéricos como capim e pereba, que eles não têm. Nossa caxumba é a papeira deles, o camundongo é simplesmente o ratinho e ONDE temos a bunda eles têm a nádega ou o rabo − e assim por diante, numa lista de menos de mil vocábulos numa língua que tem mais de meio milhão. Como eu disse, é muito pouco.