Aproveitando o nome de batismo de Hercule Poirot, seu famoso personagem, Agatha Christie escreveu Os Trabalhos de Hércules, coletânea de doze contos em que o detetive belga, metaforicamente, enfrenta os mesmos perigos que o musculoso herói grego. O cão Cérbero, que vigiava a entrada do Mundo dos Mortos, aparece aqui na figura de um ameaçador cachorro preto que monta guarda na porta de um night-club; o javali de Erimanto, que Hércules captura na neve, transforma-se num mafioso corpulento que procura se esconder numa estação de esqui na Suíça − e assim por diante. A meu ver, foi na Hidra de Lerna que a autora foi mais feliz: Poirot, ao ser contratado por um viúvo que não aguenta mais os rumores de que ele próprio tenha matado a falecida, declara, filosoficamente: “O boato é sem dúvida a Hidra de Lerna de nove cabeças, que não pode ser exterminada porque tão logo uma cabeça é cortada outra cresce em seu lugar”.
Sei muito bem o que é isso; não há semana que não apareça um desses “boatos” sobre linguagem, o qual – é uma praga − mais adeptos vai atrair quanto mais absurdo ele for. É um cardume de asneiras: uns afirmam que enfezado é coberto de fezes; outros, que aluno significa “sem luz” (credo!)… Sei que pouco eu posso fazer para matar essas bobagens na casca, mas assim mesmo nunca desisto: se não posso extinguir o fogo, ao menos tento retardar a sua propagação − e registrar meu protesto.
Pois agora vem um obscuro blogue gaúcho avisar que empregamos a palavra colorado sem saber que o seu uso original estava ligado à escravidão! Ensina ele: “Nos dias de hoje, qualquer um responderia que colorado é a denominação dada aos torcedores do Internacional” (até aqui, morreu Neves! Esta acepção, inclusive, vem registrada no dicionário Houaiss). Ele, porém, prossegue, impávido na sua ignorância: “Mas há cem anos, quando surgiu este clube e seus primeiros torcedores, a palavra tinha um outro significado. Colorado queria dizer escuro, ou negro. Por isto, alguns rios e arroios receberam o nome de colorado. Eram rios de águas turvas, ou seja, escuras devido à presença de terra escura carregada pela correnteza”.
Olhem aí, mais um terraplanista da linguagem! Durante séculos, a língua portuguesa usou este vocábulo com o sentido de vermelho, ou colorido, ou ruborizado, mas aí chega o autor de um bloguezinho (não vou identificá-lo; não faço propaganda de coisa ruim) e num traque resolve negar todas essas evidências! Na Crônica da Ordem dos Frades Menores (de 1285), um superior admoesta um jovem frade, “o qual, todo colorado, abaixou a cabeça e entrou no refeitório, juntando-se aos outros na mesa”. Como devo entender esta passagem, então? O frade ficou preto de vergonha? Se muitos riachos e rios que receberam o nome de Colorado (inclusive o do Arizona), não seria por terem as águas avermelhadas pelo tipo de solo característico? E a sinistra gravata colorada, nome dado à degola em nossas revoluções aqui no pampa, não era uma alusão à língua ensanguentada que saía pelo talho no pescoço? E no Uruguai, nosso estimado vizinho, o partido dos colorados, eternos rivais dos blancos, por acaso não tem o vermelho como a cor-símbolo? E não será exatamente por isso, ó grande sumidade, que os torcedores do Internacional receberam esta denominação?
A esta altura, o leitor deve estar perguntando por que gasto tanta pólvora em ximango. Um blogue assinado por um amador merece assim tanta atenção? É fogueira que pode incendiar uma Austrália, ou não passa de uma chaminha que vai se extinguir sozinha? Pois, amigos, eu nem falaria nesta abstrusa teoria se ela não tivesse sido encampada por um autor de renome nacional, Laurentino Gomes, em seu livro Escravidão. Este jornalista, autor de várias reportagens sobre a História do Brasil, aqui pecou por indesculpável ingenuidade, engolindo com penas e tudo aquela peta sobre o significado “antigo” de colorado. Diz ele, textualmente: “No passado, [colorado] referia-se aos negros e mulatos… Um dos primeiros clubes de futebol a aceitar jogadores e torcedores de origem africana foi o Internacional de Porto Alegre… Por isso, hoje, os torcedores do Inter se chamam, orgulhosamente, de colorados“. Ah, para com isso! É claro que historicamente ocorreu uma maior ligação dos negros com o Inter — e não é por acaso que nosso mascote é (ou era?) um esperto saci-pererê — mas não é necessário forjar uma explicação etimológica para inventar uma falsa novidade.