Esta expressão, pronunciada /lápsus cálami/, é usada no mundo inteiro para designar um erro involuntário de grafia, subentendendo-se, portanto (essa é a intenção!) que ele não se deveu à falta de formação ortográfica do autor. Se escrevo *pressiozidade em vez de preciosidade, não adianta desculpa em Latim, porque minha ignorância está mais do que evidente; contudo, se escrevo *precionidade, o “n” é um indiscutível lapsus calami. Muita coisa, contudo, está por trás dessa expressão, como veremos.
O CÁLAMO — Dentre os muitos povos da Antigüidade que usavam tinta líquida para escrever, alguns empregavam o pincel (japoneses e chineses, por exemplo), enquanto outros utilizavam uma caneta primitiva, feita de junco (era o caso dos romanos e dos árabes). Em Latim, chamava-se de calamus (do Grego kálamus) esse junco, que era cortado em hastes de mais ou menos 20cm, com a ponta cuidadosamente aparada e fendida, à semelhança das penas de nossas canetas modernas. Aliás, o nome caneta, derivado de cana, lembra até hoje a origem desse poderoso instrumento.
O recipiente em que se guardava a tinta e onde se mergulhava o cálamo era chamado de calamarius, nome que foi mais tarde aplicado aos deliciosos calamares, moluscos que são verdadeiros tinteiros marinhos; nos restaurantes espanhóis é sempre boa pedida um prato de calamares en su tinta, deliciosa iguaria que o turista estrangeiro raramente enfrenta, por estranhar comida preta, coisa que não nos assombra, a nós, os brasileiros criados a feijão.
O LAPSO — Além do sentido mais atual, de “intervalo de tempo”, lapsus é “deslize, escorregadela”. Lapsus calami, portanto, significa literalmente “escorregadela da pena”. Com a mesma intenção, difundiram-se as expressões irmãs lapsus linguae (/lápsus língüé/) e lapsus memoriae (/lápsus memórié/), que apontam para deslizes da língua (ao falar) ou da memória.
Com o uso da máquina de escrever e do computador, os sabidinhos de sempre começaram a procurar uma expressão que substituísse o calami — já que não se tratava mais de uma caneta… — e fosse mais adequada a descrever um erro de digitação. Mas como é possível que esse pessoal não perceba a extraordinária capacidade generalizadora do idioma? O Português precisaria ter 5.000.000 de vocábulos, se quisesse nomear cada item, cada ação, cada qualidade com um vocábulo específico! Como já vimos, embarcar veio de barco, mas hoje se embarca em trem, ônibus, lotação, táxi, diligência, nave espacial, helicóptero, em canoa furada e até numa fria, porque o verbo embarcar, como acontece (felizmente) com as palavras, soltou suas amarras do significado primitivo e alargou o campo de sua abrangência. Se cometo um erro involuntário usando caneta, lápis, giz, máquina de escrever, processador de texto ou aviãozinho que escreve com fumaça no céu, é claro que tudo cabe no lapsus calami.
Freud, e depois dele, toda a Psicanálise, lançou uma nova luz sobre os lapsos: muitas vezes eles denunciam pensamentos ou desejos ocultos, que vêm à tona numa dessas trocas desastradas. Isso acontece muito nas relações entre casais, onde chamar o parceiro pelo nome trocado geralmente provoca muita mágoa e ciúme — cá entre nós, perfeitamente justificados.
Depois do Acordo: antigüidade > antiguidade