Existem vocábulos totalmente independentes, sem nenhuma relação entre si, que são, contudo, tão parecidos no som que as pessoas passam a confundir um com o outro. Se fossem pessoas, nós os chamaríamos de sósias; como são vocábulos, a gramática antiga chamou-os de parônimos. Este nome é hoje considerado impreciso demais para ser útil, uma vez que o perigo de tomar uma forma pela outra depende muito do nível lingüístico do falante, do contexto, e de muitos outros fatores. Por exemplo, uma pessoa de pouca ou nenhuma instrução pode misturar horta com aorta, confusão que certamente parecerá ridícula aos meus leitores; já mandato e mandado formam um par que atrapalha muita gente bem-falante. Isso quer dizer que a lista de parônimos vai variar de pessoa para pessoa.
Apesar dessa imprecisão básica, podemos dizer que o par clássico de parônimos é formado de dois vocábulos que se distinguem basicamente por um único fonema, e essa diferença, embora clara na grafia, fica neutralizada quando falamos. Embora possamos facilmente distinguir, na escrita, eminente e iminente, sortir e surtir, despensa e dispensa, isso se torna impossível na fala, pois só vamos ouvir /iminenti/, /surtir/ e /dispensa/ (ao leitor que torce o nariz para o exemplo, jurando que essa neutralização não se dá na fala dele, já vou avisando que se engana: gravações feitas de falantes conversando com naturalidade comprovam que uma coisa é a pronúncia premeditada, em que estamos conscientes da grafia dos vocábulos, outra é a fala descontraída, em que os processos fonológicos típicos de nosso idioma — neutralizações, abrandamentos, etc. — operam livremente).
Esse parecia ser o caso de estofar e estufar; assim como em comprimento e cumprimento, soar e suar, coringa e curinga (com U, é a carta de baralho e o arquiinimigo do Batman), a distinção desaparece na fala, com a neutralização do /o/ e do /u/ num só fonema. Estufar é da família de estufa; carne estufada é carne cozida em fogo baixo, com a panela tampada (na pesquisa que fiz, entrei num paraíso estonteante de receitas da culinária portuguesa, incluindo um estufado de porco com castanhas, coelho estufado no pote de ferro, cabrito estufado com cogumelos, entre outros). Neste método de cocção, “o alimento é cozido lenta e suavemente nos seus próprios sucos e nos sucos de outros alimentos que lhe são adicionados”. Isso permite que a temperatura da carne nunca ultrapasse o ponto de ebulição do caldo, ao contrário do refogado, em que a fritura submete a carne a temperaturas muito elevadas.
Estofar, por sua vez, é da família de estofo (que tanto pode significar o tecido, quanto o enchimento de poltronas e sofás): falamos do estofamento do carro, da cadeira estofada. Isso bastou para que um daqueles gramáticos de pouca ciência, aplicando a sua “lógica” particular ao problema, criasse a teoria (ainda hoje muito difundida por aí) de que houvera aqui uma confusão entre dois parônimos, e que, portanto, o correto seria dizer “estofou o peito”, “o chute estofou as redes”, “as latas de conserva estofadas podem ter botulismo”, porque se trataria de estofar (encher, rechear), nada tendo a ver com estufa. O raciocínio tinha uma simplicidade cativante: “Ninguém põe o peito na estufa, mas sim o enche, o estofa, como fazemos com as almofadas”. Ora, em questões de Português, quando alguém tira assim um coelho da cartola, aposto dez por um que este coelho é de mentirinha. E não deu outra: essa sumidade esqueceu que existe o verbo tufar, que significa “inchar, aumentar de volume” (Morais nos dá o belo exemplo de “tufa o pão no forno”), verbo que produziu outro estufar, além daquele ligado à estufa.Tanto o Aurélio-XXI quanto o Houaiss registram os dois verbos estufar, homógrafos, esclarecendo, de uma vez por todas, que estufamos o peito, a bola estufa as redes, as latas mal conservadas podem ficar estufadas.
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