Numa roda de verão, entre amigos, falava-se das vantagens de incluir aulas de Latim no Ensino Médio, com vêm fazendo algumas poucas escolas do país — entre elas, o Leonardo da Vinci, de Porto Alegre, cujo programa de Língua Portuguesa é por mim coordenado desde a fundação. Um dos participantes, defensor ardoroso do idioma de Virgílio e de Ovídio, tomado por um entusiasmo classicizante, sentenciou, definitivo: “E tem mais: o Latim não é uma língua morta, como dizem por aí!”. Disse, e olhou para mim, pedindo uma confirmação que eu não podia dar. Era um exagero, sem dúvida, mas ao menos, como consolo, eu respondi a ele com uma paráfrase da velha sentença Amicus Plato, sed magis amica veritas: “Olha, eu sou teu amigo, mas sou mais amigo ainda da verdade”. E concluí, repetindo as sábias palavras de um médico de minha cidade natal, lendário por sua incompetência, ao examinar um operário totalmente deformado pela explosão de uma caldeira: “Não posso dizer que esteja vivo, se bem que também não possa afirmar que esteja morto. O melhor é esperar alguns dias antes de enterrar”.
É exatamente isso: o Latim não está tão vivo quanto o Português, mas também não está tão morto quanto a língua dos hititas ou dos etruscos. Em rigorosos termos científicos, uma língua morre quando desaparecem aqueles que a usavam. É simples assim; não havendo mais quem a fale, ela pára de evoluir, seu léxico pára de crescer e ela fica cristalizada para sempre, numa trágica fotografia que imobiliza o estado em que ela se encontrava quando morreu seu último falante (ou penúltimo, dizem alguns, alegando que desaparece assim a possibilidade do diálogo — o que não deixa de ser uma discussão interessante…). Nesse sentido, o Latim realmente morreu; é possível que nenhum bebê nascido a partir do séc. VI da Era Cristã, se tanto, tenha ouvido a voz de sua mãe dizer-lhe palavras doces nesse idioma.
O Latim, porém — e aqui vem um gordo porém —, ao contrário de línguas completamente extintas como o Hitita ou o Fenício, continuou a ser usado pelos religiosos e intelectuais da Idade Média, desbancando o Grego como a grande língua de cultura do Ocidente. É claro que não se tratava do Latim em carne e osso, e sim de uma modalidade estilizada a partir da língua usada pelos escritores romanos do Período Clássico, sustentada por regras rígidas que a escola tratou de difundir e consolidar — mas mesmo assim era um idioma funcional, empregado por todos os intelectuais europeus. Em Latim eram escritos os tratados científicos e filosóficos, e em Latim eram ministradas as aulas e as conferências nas universidades, o que permitia que humanistas franceses e escoceses fossem lecionar em Coimbra ou que Diogo de Gouveia, lusitano de Beja, fizesse carreira brilhante na Sorbonne, em Paris, onde chegou a reitor.
Como era inevitável, depois do Renascimento o lugar do Latim foi pouco a pouco tomado pelas línguas modernas, passando os franceses a escrever em Francês, os italianos em Italiano, e assim por diante. Só o Vaticano não o abandonou, e até hoje o emprega para suas encíclicas e para todas as comunicações oficiais e administrativas. Ora, acontece que o vocabulário latino original não abrange as peculiaridades do mundo moderno, criando um grande problema quando se trata, por exemplo, de comunicar que a válvula do banheiro dos cardeais está emperrada ou que o papamóvel precisa urgentemente de uma calibragem dos pneus. Para solucionar esse tipo de situação, o eruditíssimo cardeal Antônio Bacci publicou, na década de 50, um dicionário de novos termos latinos, hoje suplantado pelo Lexicon Recentis Latinitatis (“Dicionário de Latinidades Recentes”), que vem sendo elaborado pelo próprio Vaticano. Criou-se, assim, uma situação paradoxal, tão absurda quanto o laudo do médico que mencionei acima: o Latim está tecnicamente morto, por não ter mais falantes nativos, mas seu léxico continua recebendo anualmente novos vocábulos, criados artificialmente. Alguns deles, por ser criação de um indivíduo e não de um grupo social, exprimem as crenças e os preconceitos de seu criador: por exemplo, o jazz, que o Vaticano hoje chama de jazensis musica, aparece, no dicionário do cardeal Bacci, tendenciosamente denominado de absurda symphonia! Há termos que parecem feitos a martelo, como veremos, e outros extremamente prolixos, distantes da brevidade e da concisão que sempre caracterizaram a língua dos romanos. Confesso que às vezes eles dão no prego, como no caso de flerte, que chamam delicadamente de amor levis (“amor leve”); em outras, no entanto, dão na tábua: em vez de simplesmente incorporar o utilíssimo vocábulo biquíni, preferem um vesticula balnearis bikiniana (“roupinha de banho de Bikíni”), que, como se diz no refinado mundo acadêmico, é mais comprido que puteada de gago. Mas o assunto continua.
Falávamos do Latim usado nas comunicações oficiais da Igreja Católica e no esforço dos latinistas do Vaticano para manter atualizado o léxico de uma língua que parou de crescer há mil e quinhentos anos. É um problema insolúvel. O leitor pode imaginar o Brasil de hoje usando um idioma que estivesse estacionário desde o Descobrimento? Como iríamos descrever um fato tão simples como “o táxi e a moto se chocaram, e o pessoal do posto de gasolina chamou uma ambulância“? Essas palavras não existiam no Português daquela época porque naquela época não havia táxis, motos, gasolina ou ambulâncias. Assim que essas realidades passaram a fazer parte do nosso quotidiano, a língua portuguesa providenciou palavras para designá-las. É dessa forma que crescem as línguas vivas — naturalmente, sem saltos, como as árvores da floresta.
Para suprir o Latim dos milhares de vocábulos que ele deixou de incorporar neste milênio e meio em que ficou paralisado, criaram-se comissões que tentam propor designações “alatinadas” para os fatos e os objetos corriqueiros do mundo moderno. É um trabalho de Sísifo, pois no tempo que os estudiosos levam para sugerir uma centena dessas “traduções”, quatro ou cinco vezes mais palavras já vieram se juntar à fila de espera. O problema maior, no entanto, é que esse tipo de atualização forçada acaba gerando um grande número de torneios de frase (circunlóquios ou perífrases — um veio do Latim, o outro do Grego, mas ambos expressam a mesma idéia de “falar em círculos”). Isso torna a língua muito prolixa e cansativa, como se falássemos por meio de definições de dicionário ou por rodeios verbais, imitando os pobres índios dos filmes de faroeste, os quais, acreditando na palavra do “grande pai de Washington” (leia-se: “o presidente”), sempre acabavam sendo traídos, aprendendo, na carne, a simples verdade de que “o cara pálida fala com duas línguas” (leia-se: “Os brancos mentem”). O mesmo ocorre no Novo Latim, com construções cujo efeito é muitas vezes ridículo e desajeitado. “O radioamador fez um checape” é vertido como “o operador de radiofonia por prazer FEZ um exame no corpo inteiro” — onde a expressão em itálico corresponde, em vernáculo, às expressões que os novilatinistas propuseram, respectivamente radiophoniae operator voluptarius e totius corporis inspectio. E por aí vai, em tom que parece brincadeira: “a hora do rush é quando mais se buzina” é traduzido como “o período de afluência máxima é quando mais se toca o sinal sonoro dos automóveis”; “o datilógrafo raspou o bigode” fica “o perito em máquina de escrever raspou os pêlos do lábio superior”; “o caricaturista comia pipoca” se transforma no quase incompreensível “o desenhista de imagens para rir comia grãos de milho tostados”. É a mesma armadilha em que caíram (e vão continuar caindo) os puristas de todas as épocas: em vez de absorver vocábulos modernos, usados em todo o planeta (como táxi, hotel, pizza, sauna, jeans, etc.), propõem em troca substitutos de sua lavra, como se a língua fizesse caso das criações individuais.
Examinar o Lexicon Recentis Latinitatis, no entanto, serve para aumentar a consciência sobre nosso próprio idioma. Em geral, a convivência com a língua materna vai nos deixando cegos para a etimologia das palavras e das expressões mais usadas; quando, no entanto, conseguimos olhá-las com o distanciamento de um estrangeiro, terminamos redescobrindo o vigor primitivo de palavras que nos pareciam triviais — e a tradução de um de nossos vocábulos para um idioma que não o conhece tem esse efeito. Paulo Rónai, húngaro de nascimento, tradutor e grande estudioso do Português, comenta uma dessas iluminações reveladas pelo esforço de traduzir: “Senti arrepios ao ler pela primeira vez, ainda na Europa, a frase portuguesa Vi com estes olhos que a terra há de comer, que se me afigurou um achado individual de escritor, de extraordinário vigor e efeito, e que ouço aqui freqüentemente empregada sem maior conteúdo emocional”. No Lexicon, fita adesiva é taenia glutinosa (“fita pegajosa”), a nos lembrar que a tênia, a solitária, tem a forma de uma fita. A porca (a popular “polca” dos mecânicos) é vagina chochleae (“bainha do parafuso”), comprovando a suspeita de que o batismo desta pecinha, no Português, nasceu da observação do sexo dos suínos. Para aprender o que é bom para a tosse, os fumantes deveriam saber que charuto é bacillum nicotianum (“bastão de tabaco”) e o cigarro é fistula nicotiana (“pequeno tubo de tabaco”) — bacilos e fístulas, cruz-credo! Desodorante aparece como foetoris delumentum (“eliminador de fedor”) — sobra-lhe em precisão o que lhe falta em elegância… Reduzido à sua devida dimensão, o hambúrguer é isicium hamburgense (“picadinho à moda de Hamburgo”), e nada mais que isso. Finalmente, sem querer ser desmancha-prazeres, lembro que espaguete é pasta vermiculata (“massa em forma de vermes”). Bom almoço!
Depois do Acordo: idéia > ideia
pêlos > pelos
freqüentemente > frequentemente