As palavras se confundem de tal maneira com a coisa que elas designam que podemos usá-las mil vezes sem que elas nos despertem a atenção — até que apareça uma criança com aquele olhar dos recém-chegados neste mundo e nos obrigue a pensar sobre laços e relações de sentido que, como dizia o padre Vieira, olhávamos mas não víamos. Numa aula de pequeninos, um deles perguntou se o Peru (o país) recebera esse nome por causa da ave, ou se tinha sido o contrário. A professora, que ainda é das boas, disse, prudente, que precisava pesquisar para dar uma resposta honesta. Ela fez um bom curso de Letras e sabe que muita gente — até o grande Antenor Nascentes, autor de ótimos dicionários — já se arrependeu por arriscar etimologias apressadas. Como sempre dei assistência técnica a meus ex-alunos, mandou-me um e-mail, pedindo ajuda, o que me fez soltar o espírito no rastro dessa ave turista.
O nome dos países do Novo Mundo — entre eles, o Brasil — foi dado pelos descobridores europeus. Sei que isso hoje desagrada à ala tupiniquim da comunidade acadêmica, que também não gosta que se utilize o termo “descobrir”, não quis comemorar os 500 anos do Brasil e gostaria de organizar uma gigantesca manifestação de repúdio a Cabral. Eu é que não entro nessa discussão; só sei que naquela época esta era a regra do jogo — quem domina e coloniza dá o nome — e nem preciso dizer que os primitivos habitantes dessas regiões nunca foram chamados a opinar. Os critérios desse batismo, como sabemos, foram os mais variados. A Venezuela ganhou esse nome por causa de uma aldeia indígena construída sobre palafitas no lago Maracaibo, que lembrou aos marinheiros de Colombo a distante Veneza. O nome de nossa vizinha e rival, a Argentina, vem de prata (no Lat., argentu); aliás, não é por acaso que ali também fica o Rio da Prata. Foi uma avaliação equivocada dos navegadores espanhóis, que se impressionaram ao ver os nativos cobertos de adereços e jóias, sem saber que aquela riqueza era apenas aparência (em solidariedade a nossos sofridos vizinhos, sufoco o inevitável comentário maldoso…). Na América Central, Honduras significa “funduras” (do Esp. hondo, “fundo”), local onde os pilotos de Colombo encontraram águas muito mais profundas que o comprimento de suas sondas. Na maioria dos casos, no entanto, os europeus terminaram optando mesmo pelo nome nativo da região; o México, a Guatemala, Cuba, o Haiti, a Nicarágua, o Chile, por exemplo, estão neste grupo — e com eles o Peru.
Por sua vez, o nosso peru de Natal (Meleagris gallopavo) já era domesticado no México antes do descobrimento da América. Dali foi levado por Cortez para a Espanha, de onde, pela qualidade e abundância de sua carne, passou rapidamente à Inglaterra e aos demais países vizinhos. Por volta de 1580, já era presença costumeira nos banquetes de quase toda a Europa. A popularidade do peru pode ser medida pelo fato de Shakespeare (circa 1600) poder mencioná-lo na sua peça Noite de Reis (Twelfth-Night, Ato 2, Cena V) para criticar Malvólio, pressupondo que a audiência estivesse acostumada com o bicho e com seu hábito de inchar o papo e eriçar as penas. Nas ocasiões especiais, o peru passou a figurar nas mesas junto a seus ilustres predecessores, os faisões, os cisnes e até mesmo os pavões. Dizem que foi Charles Dickens, no século passado, quem deu o empurrãozinho definitivo para torná-lo a ave por excelência das ceias de Natal.
Desde o início os esquisitos ingleses denominaram a ave de turkey – literalmente, Turquia. Para justificar essa opção, os dicionários ingleses explicam que os mercadores que provinham do Mediterrâneo oriental (o denominado Levante) eram conhecidos na Inglaterra como “mercadores da Turquia”, porque a região fazia então parte do Império Turco. Possivelmente tenham incluído a ave entre suas mercadorias e daí a confusão: passaram a chamá-la de Turkey cock (“galo da Turquia”) e depois, muito simplesmente, turkey.
Do outro lado do Canal da Mancha, os franceses não incorreram no mesmo erro britânico. Para eles, o peru tinha vindo mesmo é das Índias — ou melhor, das Novas Índias. Afinal, este tinha sido o famoso equívoco de Colombo: ao pisar no raso da praia virgem, pensou que tinha chegado às tão cobiçadas Índias, e aos homens nus e primitivos que o observavam, recortados contra a floresta, chamou de índios (o que levantou um irônico comentário de um historiador desrespeitoso : “Que baixo conceito tinha ele da Índia, meu Deus!”). Portanto, na mais perfeita lógica gaulesa, os franceses chamaram a nova ave de coq d’Inde (“galo da Índia”), que evoluiu para dinde, sua forma atual.
Assim também pensaram muitos outros povos, como fica evidente em seus idiomas: no Catalão, no Polonês, no Russo, no Árabe, até no áspero Basco, o peru também recebeu nomes que o ligam à Índia ou às Novas Índias. No Ídiche ele é chamado indik (apesar de ter sido introduzido tardiamente na culinária judaica, a maioria dos rabinos e comentaristas o considera kosher). No próprio Turco, ele é chamado hindi.
Nossos vizinhos, os espanhóis, que tiveram a missão de levar o peru das Américas para as mesas do Ocidente, terminaram chamando-o de pavo. Ora, o dicionário do Corominas nos diz que, no Espanhol, pavo ou pavón era o nome dado na Idade Média ao pavão, o belo pássaro de cauda espetacular, vindo da Ásia e já presente na arte e na literatura dos gregos e romanos. Quando, após a Conquista do México, levaram o peru para a Espanha, deram-lhe o mesmo nome, talvez pela cauda também generosa que o peru selvagem ostenta até hoje na América. Como o Espanhol não poderia ter um só nome para dois animais diferentes, o peru ficou sendo pavo e o pavão, pavo real. Eu, que passei a infância vendo nas páginas da revista Manchete o desfile de fantasias do Municipal, onde brilhavam criações do tipo “Sonho de um Pavão Real” (segundo Stanislaw Ponte Preta, leia-se “Veado Real”), achava que o adjetivo real, em pavo real, estivesse ligado a rei. O dicionário do Corominas, contudo, foi implacável com a minha ilusão: real significa aqui apenas “verdadeiro, autêntico”. Fica-me ao menos o consolo de pedir, na próxima vez que for a Montevidéu, um sanduíche de blanco de pavita, que se traduz por um indecoroso “peito de peruzinho”.
Quanto a nós, já no primeiro século de nossa colonização começamos a criar e a assar o peru, aqui conhecido como galinha do Peru ou galo do Peru (Diogo do Couto, Décadas), já que nos servimos do topônimo Peru, durante um bom tempo, para designar toda a América Espanhola. O leitor pôde avaliar o quanto se escondia na pergunta da criança: o peru veio do México, mas os ingleses pensaram que tinha vindo da Turquia; os franceses, os catalãos, os bascos, os árabes, os russos, os judeus do mundo todo e os próprios turcos pensaram (com certa razão) que ele tinha vindo das Índias. Os espanhóis sabiam de onde ele vinha, mas não o chamaram de México, preferindo situá-lo como um primo americano do pavão. E nós, brasileiros e portugueses, pensamos que ele tinha vindo do Peru — que não conhecia o peru. Hoje ele faz parte mais ativa em nosso vocabulário. Além da ave e do país, peru pode significar, entre outras coisas, “sujeito que fica olhando o jogo dos outros e dando palpites”; perua, além de ser sua fêmea, serve como sinônimo para “caminhonete” (fala-se com naturalidade nas manifestações dos perueiros em São Paulo) e para designar aquelas mulheres espalhafatosas e de mau-gosto. Por fim, nosso espírito científico nos obriga a registrar que, por razões mais ou menos óbvias, o peru passou a integrar aquele grupo obsceno de nosso galinheiro, que inclui também o ingênuo pinto e o poderoso ganso — mas aí já estamos fora da pergunta da criança.
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