Professor Moreno, gostaria de saber, realmente, qual é o feminino de varão. Usa-se muito virago, mas, em consulta ao dicionário, descobri que virago é mulher com trejeitos masculinos. Seria varoa? Não encontrei este termo em nenhum dicionário. Se o senhor puder me ajudar, ficarei grata.”
Ana Paula — Campo Grande (MS)
Minha cara Ana Paula: o feminino de varão é varoa. Vais encontrar o termo registrado no Aurélio, no Aulete, no Morais, sem maiores problemas. A forma virago, em Latim, significava “mulher forte, destemida, heróica“, e com esse mesmo sentido entrou no nosso idioma. Assim aparece na Vulgata, a versão latina da Bíblia, e assim o emprega Vieira, quando, comentando a passagem do Gênese onde Eva é chamada de “virago”, critica a mulher de Adão por não ter sabido resistir aos apelos insinuantes da traiçoeira serpente:
“…pôs-lhe por nome Virago, dizendo que assim se havia de chamar de ali por diante. E contudo, não mesmo Adão, nem algum de seus descendentes chamou nunca tal nome a Eva. E por que razão perdeu Eva o elogio de tão honrado nome? — Porque lho pôs Adão sem exame, nem testemunho da experiência; e na primeira ocasião que se ofereceu, viu que não tinha nada de varonil e que era indigna do nome de Virago Quem não teve valor para resistir a uma cobra, nem peito para rebater uma maçã (vede que bala!), porque se havia de chamar Virago?” [os grifos são meus; o estilo genial, do Vieira ]
Em pouco tempo, contudo (Vieira é do séc. XVII), virago assumiu o significado que hoje tem: “mulher que tem estatura, voz, aspecto, maneiras de homem” (Aulete); “mulher robusta com estatura e forças de homem” (Morais). Fui catar esta em Gilberto Freyre, que não deixa dúvida: “Mme Durocher — um virago, uma mulher-homem, vestindo-se de sobrecasaca, calçando-se com botinas de homem — foi uma das primeiras mulheres a andarem a pé pelas ruas do Rio de Janeiro; e causou escândalo”. Como era de se imaginar, o vocábulo não poderia deixar de aparecer no romance Luzia Homem, de Domingos Olímpio: “Mulher que tinha buço de rapaz, pernas e braços forrados de pelúcia crespa e entonos de força, com ares varonis, uma virago, avessa a homens”. E assim também em Euclides da Cunha, em Camilo Castelo Branco, entre outros grandes. A própria passagem do Gênese (2:23), comentada por Vieira, tem nova redação na versão moderna do Velho Testamento: “Então disse o homem: esta é agora osso dos meus ossos, e carne da minha carne; ela será chamada varoa, porquanto do varão foi tomada”.
Há quem ainda hoje, na área jurídica, insista em opor ao “cônjuge-varão” o “cônjuge-virago“, alegando motivos etimológicos. Estão duas vezes sem razão: primeiro, porque etimologicamente virago nunca foi um feminino genérico de varão, que pudesse ser aplicado a qualquer mulher; segundo, porque (cometo o pecado de citar a mim mesmo) “as palavras são o que valem hoje, não o que valiam há trezentos anos”. Se eu usar hoje o termo virago com relação a uma mulher, ela terá todo o direito de se sentir insultada. Abraço. Prof. Moreno
Depois do Acordo: heróica> heroica