Caro Doutor: tomo a liberdade de reproduzir o trecho de uma música, pois não sei se o senhor a conhece, para, em seguida, fazer-lhe a pergunta:
Uma ocasião, cantando num grupo de serestas, as colegas disseram-me que na segunda estrofe, onde há o oblíquo ME, também seria lhe. Acabei discutindo, pois disse-lhes que, além de estar correta desta maneira, a letra toda estaria fora do padrão ao adotar o uso do LHE, em vez de O ou A (questão de objeto direto ou indireto, e por aí afora). Pode ser que eu esteja errada, mas me parece que se fizer a substituição por lhe, entraria uma terceira pessoa na jogada; não seriam apena o “Romeu e a Julieta”. Estou certa? Esclareça-me, por favor.Um abraço.
Maria C. — Cambuí (MG)
Prezada Maria: muito cantei essa música, usando também o pronome ME. Ocorre que ele não deveria estar aí, porque toda a letra simula estarmos perguntando (uma pergunta retórica, é claro, porque a resposta é óbvia) “quem é que faz isso, aquilo, aquiloutro”. Vou reescrever a letra (que me perdoem os autores, Osmar Navarro e Oldemar Magalhães), trocando o LHE e os possessivos por outros pronomes:
“Quem é/ que cobre VOCÊ de beijos/ satisfaz os desejos DE VOCÊ/ e que muito quer A VOCÊ? // Quem é/que esforços não mede/quando você pede A ELE/ uma coisa qualquer?”.
Percebes? No lugar em que coloquei a ele, o autor deve ter seguramente escrito lhe. Nós cantávamos com me porque percebíamos a evidente direção da resposta (“Sou eu!”); contudo, se ali estivesse “me“, na reescrita que fiz teria aparecido “quando você pede a mim/uma coisa qualquer”. Se quiseres ter mais certeza, basta trocar o tratamento da 3ª para a 2a. pessoa (tu): “Quem é/que te cobre de beijos/satisfaz teus desejos/e que muito te quer?// Quem é/que esforços não mede/quanto tu LHE pedes/uma coisa qualquer?”.
O que estranhaste foi o emprego do lhe para duas pessoas diferentes no universo desta canção: o tempo todo esse pronome está se referindo à pessoa com quem estou falando (“você”), mas naquele único verso ele se refere a “ele”. Mutatis mutandis, é como na frase “Indico a você o nome deste meu amigo; você poderá pedir a ele o que quiser”. Se utilizarmos o pronome “lhe” (corretamente empregado, porque ambos os termos sublinhados são objetos indiretos), vamos ter “Indico-lhe o nome deste amigo; você poder pedir-lhe o que quiser”, onde o primeiro lhe é traduzido por “a você“, o segundo, por “a ele“.
É para evitar essa ambigüidade que a língua falada no Brasil usa o “você” misturado com te, teu e tua: “Você não pode fazer isso com tua irmã”, “Se você me emprestar, eu te pago até dezembro”, “Indico-te o nome deste meu amigo; você poderá pedir-lhe o que quiser”— combinações ainda consideradas inaceitáveis na língua culta, mas extremamente eficientes na falada. Abraço. Prof. Moreno
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