Caro prof. Moreno: outro dia, enquanto assistia a um programa esportivo na televisão, ouvi o narrador dizer “…e chuta por sobre o gol!”. É justamente sobre essa expressão, a qual julgo estar incorreta, que gostaria de uma explicação: é correto ou jamais será permitido o uso de duas preposições juntas? O que me fez aumentar minha dúvida foi o fato de ter lido por sobre em Terras do Sem Fim e em alguns poemas de autores respeitáveis. Obrigado pela atenção. Rafael M. — Porto Alegre
Meu caro Rafael: não consigo entender por que essa combinação te parece incorreta; será que alguém andou ensinando por aí que não podem existir duas preposições juntas? Se o fez, fez muito mal, porque esses encontros de preposições, embora restritos a alguns poucos casos, têm muita utilidade e já foram usados por muitos escritores clássicos.
Euclides da Cunha, por exemplo, fala das nuvens que passam “por sobre os chapadões desnudos”, do valente sertanejo que, “saltando por sobre o cadáver da irmã, arroja-se contra o círculo assaltante”, do combatente que “distribuía, jogando-os por sobre a cerca, cartuchos”. Machado usa, mas pouco. Em Portugal, Camilo também usou: Simão, do Amor de Perdição, consegue “saltar ao campo por sobre a pedra dum agüeiro“; Eça de Queirós descreve o som mole de chinelos que se aproximam “por sobre o tapete”, fala do canto dos muezins “por sobre os terraços adormecidos da muçulmana Alexandria” e se encanta com o sol, que, “sereno como um herói que envelhece, descia para o mar por sobre as palmeiras de Betânia”.
Se por sobre é moeda corrente, não é de estranhar que por sob também o seja; o desastrado Teodorico, em A Relíquia, do mesmo Eça, consegue comover a sua odiosa titia: “E pela vez primeira, depois de cinqüenta anos de aridez, uma lágrima breve escorregou no carão da Titi, por sob os seus óculos sombrios”. O nosso Alencar também usa: “o destemido escudeiro sem se importar com os outros, mergulhou por sob as árvores e apresentou-se arrogante em face do tigre”. Friso que não sou daqueles que só aceitam a autoridade dos autores tradicionais e consagrados; estou apresentando esses exemplos para veres que há muito tempo essas combinações já eram usadas por pessoas que escreviam muito bem.
Posso mencionar ainda por entre, dentre (de+entre) e para com, bastante comuns na escrita culta. Mais interessante ainda é a combinação de até + a, uma locução prepositiva usada com a intenção de aclarar o sentido da frase. O vocábulo até é um conhecido causador de ambigüidades, já que pode ser entendido ora como preposição (o ônibus vai até São Paulo; ele chegou até o topo do monte), ora como partícula de inclusão (todos foram convidados, até eu; o cabrito comia de tudo, até latas e garrafas plásticas). Em frases como “o incêndio na plantação queimou tudo, até o portão”, abre-se a possibilidade de dupla interpretação: o fogo chegou até o portão, e aí parou (o até é visto como preposição), ou o fogo queimou tudo, inclusive o portão? Por esse motivo, costuma-se reforçar a preposição até com a preposição a: “o fogo queimou tudo, até ao portão”; dessa forma, fica eliminada a leitura do até como inclusive.
É claro que o uso desse reforço é opcional; lembro apenas que, ao ser usado, pode acontecer um encontro desse a com o artigo feminino, produzindo-se o nosso velho fenômeno da crase: “O incêndio na plantação queimou tudo, até à cerca”, “pintei a sala toda de branco, até à porta”, “vou amar até à morte”. Abraço. Prof. Moreno
Depois do Acordo: agüeiro>agueiro cinqüenta>cinquenta ambigüidade>ambiguidade