Quando uma língua entra em contato cultural ou político com outra, é natural que ocorram empréstimos linguísticos entre elas. Não me agrada, confesso, essa denominação de “empréstimo”, que me soa como um disfarce eufêmico para o que é, na verdade, uma importação, e que alguns, numa clara posição crítica, preferem chamar de estrangeirismos. É natural que se importem e exportem palavras e formas de dizer; todas as línguas do mundo o fazem. No entanto, amargurados pela nossa triste dependência econômica, temos a tendência a ver a importação como um mal que é infligido aos fracos. Não é assim; importa quem precisa, exporta quem pode, e constitui um belo tema para discussão o fato de ser o Inglês, hoje, simultaneamente, a língua que mais exporta e que mais importa vocábulos, num apetite pantagruélico que já lhe rendeu o mais extenso e rico léxico do planeta.
Essas formas estrangeiras entram na língua importadora de três maneiras básicas (o que vou explicar para o Português vale para qualquer outro idioma):
(1) o vocábulo estrangeiro é simplesmente adotado, sem alteração alguma: pizza, aparatchik, karma, hippie, out-door.
(2) o vocábulo é adaptado ao nosso sistema fonológico e ortográfico (dizemos então que ele é “aportuguesado”): basquete, uísque, abajur, lasanha.
(3) o vocábulo (ou expressão idiomática) é formado por elementos de nosso próprio idioma, seguindo o molde de um vocábulo ou expressão estrangeira. Na verdade, o que estamos importando aqui é um sintagma, cujos elementos traduzimos literalmente: arranha-céu (do Ing. skyscraper); puro-sangue (do Fr. pur-sang); visão de mundo (do Al. Weltanschauung, de Welt, “mundo” + Anschauung, “visão, idéia”).
Como se vê, nenhuma dessas formas é vernácula. Todas elas entraram no Português provindas de outras línguas; o que as distingue é o maior ou menor grau de “estrangeiridade”, que vai corresponder também a um maior ou menor grau de estranheza por parte de quem as usa. Dos três tipos acima, o que menos chama atenção é o terceiro; esse tipo de empréstimo traduzido, mais sutil e mais difícil de identificar, é que chamamos de calque, calco ou, mais usual entre os lingüistas de língua portuguesa, decalque (do Fr. décalque — “cópia, imitação”). Enquanto o Inglês importou diretamente do Alemão a forma Kindergarten, nós preferimos ficar com o decalque jardim-de-infância, que é a sua tradução literal. O Ubermensch de Nietzsche foi decalcado para superman por Bernard Shaw, na sua peça Man and Superman (aproveitado, mais tarde, como o nome do conhecido herói de Kripton, que trabalha no Planeta Diário com o pseudônimo de Clark Kent). O Francês prefere usar hot-dog, mesmo, desprezando o chien-chaud, mas nós alegremente passamos mostarda no cachorro-quente. Não há dúvida de que jardim-de-infância, cachorro-quente e arranha-céu ofendem menos o nosso ouvido e nosso olho nacional do que formas exóticas como agitprop, kitsch, freeway ou paparazzi.
Um observador mais ingênuo poderia até classificar os decalques como “estrangeirismos com açúcar”, pois são mais cordiais e se misturam facilmente com nossos vocábulos nativos; no entanto, eles estão longe de ser inofensivos: se a entrada de vocábulos estrangeiros pode afetar de alguma maneira o nosso idioma, é dos decalques que devemos esperar a influência mais radical. Refiro-me àqueles casos em que, inconscientemente, terminamos importando estruturas sintáticas alheias ao Português, que invertem a ordem natural dos constituintes do sintagma. O que têm em comum (e sinistro) espaçonave, cineclube, narcotráfico, ciberespaço? Muito simples: a ordem está invertida, com o elemento modificador à esquerda, bem ao gosto do Inglês. Isso fica bem claro em centro-avante, decalque do antigo center-foward: em vez de avante central ou avante de centro, nós mantivemos, à inglesa, o modificador à esquerda. Isso não é (ou não era?) nosso, mas parece que pegou como praga, a julgar por milhares de casos como “Água Doce Cachaçaria” (em Manaus), “Remanso Hotel” (em Quixeramobim), “Nando Pastéis” (em Vitória), “São Paulo Futebol Clube” (em São Paulo), “Angorá Malhas” (em Gramado) e “Muiraquitã Viagens” (em Macapá).
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