Um leitor traz de volta o problema da champanha, e o Doutor aproveita para explicar o gênero das palavras estrangeiras.
Caro Prof. Moreno: li a sua argumentação sobre o caso do champanha, com a qual, data maxima venia, não concordo, se é que me cabe não concordar!… A vida inteira os meus professores de Português me ensinaram a dizer “o champanha” (masculino). O sítio similar ao seu, de autoria do Prof. Pasquale Cipro Neto, também traz a dita palavra como do gênero masculino. Não sei, para mim, soa difícil “a champanha”. Até os franceses distinguem já o champanha do vinho, mas sem dúvida na França lhe perguntarão num restaurante “Voulez-vous du champagne, Monsieur?”. Jamais diriam “de la champagne“…
Só mais uma irresignação. Na Itália, usa-se também o gênero masculino para essa palavra francesa. E é muito engraçado, primeiro porque os italianos bairristas detestam os vinhos franceses, e, além disso, eles não conseguem pronunciar direito esse “ch”, que para nós, brasileiros, não muda. Um grande abraço.
Eduardo
Prezado Eduardo: é claro que cabe a ti, como a todos os meus leitores, o direito de concordar ou não com o que eu digo; eu apenas tento persuadir vocês a pensarem como eu, mas nem sempre tenho sucesso. Dizes que teus professores de Português passaram a vida inteira a dizer que champanha é masculino? Pois temos algo em comum: os meus também. No entanto, ao longo da minha carreira, fui ficando cada vez mais convencido de que o gênero deste vocábulo, no Brasil, passou a ser feminino. Não posso precisar quando isso aconteceu, mas sei que aconteceu. Como sabes, atribuímos um gênero a todos os nossos substantivos. Os que correspondem a seres sexuados (macaco, cantor, mestre, leão) geralmente apresentam uma forma masculina e uma feminina; nesses casos, o gênero combina biologicamente com o sexo. O gênero dos demais substantivos, contudo, é arbitrário: eles se distribuem entre masculinos e femininos segundo critérios imponderáveis. Se compararmos os pares teste e tosse, dia e pia, pau e nau, lápis e cútis, nariz e cicatriz, talismã e avelã, podemos ver que nada existe nesses vocábulos que justifique sua diferença de gênero. Uns são femininos e outros são masculinos simplesmente porque assim se fixaram no nosso léxico. Estudos modernos mostram que os falantes, ao atribuir o gênero aos vocábulos, sofrem uma razoável influência do perfil fonológico — mas isso é especializado demais para este sítio.
Há evidentes hesitações; hélice, por exemplo, é feminino para uns e masculino para outros. Em muitos casos, essas hesitações já se resolveram: no séc. XVI, na obra de Camões, ainda se lê a planeta, a cometa, hoje definitivamente masculinos; até bem pouco tempo era comum ouvir-se a telefonema ou a pijama. Como já mencionei no artigo a champanha, quando a soja foi introduzida no Brasil, defendia-se o gênero masculino, já que seria o [feijão] soja; com o tempo, os dicionários passaram a admitir os dois gêneros, e hoje, finalmente, registram apenas “s.f.” (“substantivo feminino”). É exatamente o caso da champanha. Como vocábulos com este perfil são basicamente femininos (aranha, barganha, cabanha, castanha, entranha, façanha, montanha, picanha), o gênero fixou-se no feminino, apesar do esforço das gramáticas escolares em mantê-lo no masculino. É apenas questão de tempo, e os dicionários estarão consagrando o feminino. Espera, e verás.
Outra coisa: não me venhas, meu caro, com essa de invocar o Francês. Nos vocábulos importados, em nada interessa o gênero que eles têm no seu idioma de origem; seu gênero no Português só vai ser definido no momento em que ele entrar no Português. Um bom exemplo são os numerosos substantivos franceses terminados em -age: sabotage, mirage, chantage, garage, camouflage — todos masculinos. Ao ingressarem em nosso léxico, sofrem duas adaptações indispensáveis: primeiro, recebem um M final, passando a fazer parte da numerosa classe de nossos substantivos em -agem. Escrevemos sabotagem, miragem, chantagem, garagem e camuflagem do mesmo modo que escrevemos abordagem, bobagem, calibragem, ferragem. Além disso, assim como seus confrades brasileiros, esses vocábulos vindos do Francês recebem o gênero feminino. Queres outros exemplos? La cocarde virou o cocar; la purée virou o purê; la enveloppe virou o envelope. E queres negar que la fondue (fonduta, feminino também no Italiano) já é, para nós, o fondue? Respeito a opinião do Pasquale Cipro (aliás, compartilhada pela maioria dos gramáticos escolares); apenas discordo dela, pelos argumentos que apresentei. Escolhe a que mais te aprouver, porque em qualquer uma delas vais andar em boa companhia. Abraço. Prof. Moreno