Olá, tudo bem? Adorei sua página. Muito explicativa e didática. Aproveitando essa particularidade, tenho uma dúvida — não do que é certo ou errado, mas de como explicar uma coisa de forma que outras pessoas parem de cometer o mesmo erro. Sou professora de Materiais Dentários em uma Faculdade de Odontologia. Dentro de minha disciplina, trabalhamos muito com propriedades reológicas de Materiais, ou seja com sua viscosidade. E volta e meia, meus alunos, e até mesmo o meu assistente, insistem em dizer que o material é fluído e não o correto, que é fluido, com a tônica no I. Já fiz de tudo, até parar a aula para explicar que é igual a gratuito, mas não tem jeito. Será que você poderia me ajudar a dar tal explicação de uma forma bem convincente? Assim, pelo menos, eles pensariam antes de dizer. Obrigada e parabéns pela página. Fernanda
Minha cara Fernanda, conheço muito bem a sensação: às vezes parece que nunca chegaremos a dissipar as névoas da ignorância. No entanto, como sabes muito bem, nós professores não desanimamos com pouca coisa; voltamos, e voltamos, e voltamos, até que apareça um caminho que nos leve à mente dos alunos (dito de maneira mais chã: acreditamos, no fundo, que água mole em pedra dura tanto bate até que fura). Por isso, o melhor que posso fazer é trazer-te alguns subsídios teóricos para apoiar a tua justa batalha. Eu já escrevi sobre fluido ou fluído (dá uma olhada), mas vou reforçar alguns pontos e acrescentar outros.
É necessário que teus alunos percebam que não estás insistindo em ninharias, mas que se trata de dois vocábulos diferentes, com prosódia (posição da sílaba tônica) e acentuação distintas. De um lado, temos o vocábulo nominal (pode ser tanto substantivo, como adjetivo) FLUIDO; a pronúncia é FLUI-do, com a primeira sílaba pronunciada como fui ou Rui. Como a vogal tônica é o U, é evidente que não cabe pôr um acento sobre o I. Este é o vocábulo que aparece em “mecânica dos fluidos“, “fluido de freio”, “substância fluida“, “a sala está com maus fluidos” (para quem acredita), ou, finalmente, no início do poema Antífona, de Cruz e Sousa:
Ó Formas alvas, brancas, Formas claras
De luares, de neves, de neblinas!
Ó Formas vagas, fluidas, cristalinas…
Incensos dos turíbulos das aras.
Sei que não é muito próprio para uma aula de Materiais Dentários, mas talvez até fosse estratégico mostrar a teus alunos como o terceiro verso ficaria destruído se o adjetivo fluidas fosse pronunciado como eles querem.
Do outro, temos o particípio do verbo fluir, FLUÍDO, à semelhança de caído, saído: “O filme era tão bom que eles não se deram conta que mais de duas horas haviam fluído“; “Havia um vazamento no tambor do freio, e todo o fluido havia fluído para o chão da garagem”. Acho importante ressaltar, na tua argumentação, que este vocábulo leva acento pela regra do hiato.
Acontece que há uma tendência popular a mudar a prosódia de termos como gratuito, circuito, fortuito. Em muitas rádios já se ouve entradas /gratu-í-tas/, /curto-circu-í-to/, com o I tônico — o que é um contra-senso, porque, se fosse tônico, deveria levar o mesmo acento de ruído e caído. Este é o processo que está agindo sobre o fluido, levando as pessoas descuidadas a pronunciá-lo da mesma forma que o particípio fluído. Isso ainda se aceita nos que não tiveram a sorte de ter estudo; agora, vamos combinar: alunos da Odonto, futuros profissionais, não têm desculpa! Eles têm a obrigação de zelar pelo apuro de sua linguagem tanto quanto pelo de seu avental ou seu jaleco — e não estou falando apenas de algum detalhe secundário que eu, reacionariamente, esteja tentando preservar, mas sim da diferença entre dois vocábulos distintos, o que não é pouca coisa. Espero que isso te ajude a domar as feras! Abraço. Prof. Moreno
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