Guiana

Professor, eu me interesso bastante pela nossa língua e tenho uma dúvida sobre o nome dos países Guiana e Guiana Francesa. O U é pronunciado? Já ouvi gente pronunciando e não pronunciando. Pelo que conheço, deveria ser um U mudo, mas como é nome de país, fico na dúvida. E se for pronunciado mesmo, não fica estranho demais? Mas, por outro lado, me parece impossível indicar que ele não é mudo usando as regras comuns de ortografia.Obrigado.

Marcus Aurelius F.  — Santa Maria (RS)

Meu caro Marcus: talvez não tenhas percebido, mas o raciocínio (absolutamente correto) que desenvolveste desvela um problema de que pouca gente tem consciência: nosso sistema ortográfico foi minuciosamente construído para representar, por escrito, os vocábulos do Português, mas não os de outras línguas. Quem se queixa da arbitrariedade de nossa ortografia não entende muito do que está falando: cada língua tem um sistema ortográfico que atende a suas necessidades particulares. É evidente que um construto dessa magnitude, que vai sendo aprimorado e modificado ao longo dos séculos, precisa estar intimamente relacionado com a realidade fonológica de cada idioma. A ortografia inglesa não tem como representar os nossos ditongos nasais /õy/  /ãw/ (como em põe e mão) simplesmente porque eles inexistem na realidade fonológica do Inglês. Por sua vez, a ortografia do Português não tem como representar o “L molhado” ou o “U com biquinho” do Francês; e assim por diante. Quando entra em nosso sistema um desses vocábulos estrangeiros, somos obrigados, inapelavelmente, a adaptar sua grafia (e a sua pronúncia, também): maquillage vira maquiagem ou maquilagem; purée vira purê (ou pirê, como querem os meus filhos); bureau vira birô; groseille vira groselha; e assim por diante (já escrevi sobre isso, quando discuti o plural de gol).

Alguns desses vocábulos exóticos, entretanto, JAMAIS serão grafados satisfatoriamente em nosso sistema. Todas as tentativas de adaptar pizza foram infrutíferas, e ela ficou assim mesmo. O fato de hesitarmos entre cãibra ou câimbra (com este acento sobrenatural!) revela que não estamos ainda bem convencidos; quem sabe cãimbra? Ou cambra, como era no séc. XV? Pois Guiana é outro desses enguiços. Primeiro, vamos à PRONÚNCIA: não esqueças que a fala vem acima de tudo; a escrita é algo posterior, acessório, uma tentativa de representar a realidade fonológica. A pronúncia é /gúyana/ — o que constitui, como percebeste, uma seqüência sonora que ultrapassa a capacidade de nosso sistema gráfico. Mesmo se continuássemos a usar o trema, recentemente abolido, e escrevêssemos *Güiana, estaríamos indicando a pronúncia /gwíana/, proparoxítona, com o I tônico. Se usássemos o acento (*Gúiana), pior ainda seria a emenda, porque estaríamos alterando a vogal tônica do vocábulo. A única maneira literal — mas absolutamente intragável — de representar essa seqüência de fonemas seria *Gui-Ana, uma aberração morfológica, porque estaríamos transformando em composto o que sempre foi um vocábulo simples. É por essa razão que nós, sabiamente, escrevemos Guiana, mas pronunciamos /guyAna/, escrevemos pizza, mas pronunciamos /pitça/, freezer, mas pronunciamos /frízer/, blazer, mas pronunciamos /blêizer/ — como todos os vocábulos estrangeiros que precisamos usar mas ainda não foram (e talvez nunca venham a ser) aportuguesados. Abraço. Prof. Moreno