Caríssimo professor, gostaria que você tirasse uma dúvida que me persegue desde sempre: a acentuação (ou ausência desta) e grafia correta dos verbos ter e conter. Ele tem um carro. Mas… eles têm, têem ou nenhum dos dois? Isto contém aquilo? E no plural ? Qual a regra? Grata. Lea — Rio de Janeiro
Minha cara Lea:
Não me admiro que perguntes sobre essas duas formas verbais: são casos especialíssimos, ortográfica e morfologicamente. A comissão que tratou de nossos acentos procurou — e conseguiu na grande maioria dos casos — criar regras que tenham um valor geral e sejam aplicáveis a todo e qualquer vocábulo que se enquadre em determinado perfil prosódico e ortográfico. Para solucionar o problema de têm e vêm, contudo, não teve outro remédio senão criar uma regra ad hoc.
Numa espécie de azar flexional, a 3ª pessoa do sing. e a 3ªdo plural do Presente de TER e VIR, dois de nossos mais importantes verbos, são absolutamente idênticas: ele TEM, eles TEM; ele VEM, eles VEM. Muita gente me escreve “sugerindo uma solução” para o problema (Santa ingenuidade! Como o mundo pode ser tão simples assim para alguns?): bastaria dobrar o E no plural: ele tem, eles têem, e pronto! O que eles não sabem é que as formas terminadas em –êem na 3ª do plural correspondem, morfologicamente, a uma 3ª do singular terminada em –ê: ele lê, eles lêem; ele provê, eles provêem; ele relê, eles relêem. Ninguém decidiu que seria assim; é assim porque o Português assim se estruturou, sem pedir sugestão ou opinião de professor, de gramático, de leitor ou de transeunte. Portanto, fica descartada a brilhante solução.
Os próprios acadêmicos que reformaram nossa ortografia nada poderiam fazer quanto a esse “defeito” flexional dos dois verbos. Só tinham poderes para decidir sobre a maneira de grafá-los — e aí eles puderam dar sua pequena contribuição: assinalaram o plural com um acento circunflexo, tornando as duas formas distintas ao menos na escrita: ele tem, eles têm; ele vem, eles vêm. Friso que a pronúncia continua exatamente a mesma, não vá algum desavisado tentar pronunciar com mais força e entusiasmo a 3a. do plural.
Dentro do que podiam fazer, estava solucionado o problema. Quer dizer: quase, porque mexer em ortografia é como mexer em abelheiro — vem inseto zumbindo de todos os lados. Não podemos esquecer que ter e vir produzem muitos outros verbos deles derivados, formados com o acréscimo de prefixos: manTER, conTER, entreTER, absTER, deTER, etc.; proVIR, conVIR, sobreVIR, interVIR, adVIR, etc. Ora, como todos os verbos derivados herdam as características flexionais de seus primitivos, vamos encontrar aqui o mesmo problema: ele contem, eles contem; ele provem, eles provem. Dizendo melhor: o problema é o mesmo, mas agora com um novo complicador — contem e provem, com o acréscimo do prefixo, já não são formas monossilábicas, estando, por isso, submetidas à regra geral que acentua todas as oxítonas terminadas em –ém (armazém, porém, também): ele contém, eles contém; ele provém, eles provém. Agora essas formas estão corretamente acentuadas, mas voltaríamos à estaca zero: a 3ª do singular continuaria idêntica à 3ª do plural — se não entrasse em cena, de novo, o circunflexo que identifica o plural: ele contém, eles contêm; ele provém, eles provêm (não preciso dizer outra vez: a pronúncia é idêntica; a grafia é que é diferente!).
Recapitulando, Lea:
(1) para TER e VIR: ele tem, eles têm; ele vem, eles vêm (o singular, sem acento, contrasta com o plural, acentuado);
(2) para todos os seus derivados: ele contém, eles contêm; ele provém, eles provêm (ambos, o singular e o plural, são acentuados; a diferença está no tipo de acento — o singular recebe o acento agudo das oxítonas terminadas em –ém, enquanto o plural recebe o acento circunflexo diferencial). Este é um bom exemplo para os leitores perceberem como um sistema ortográfico está sempre em luta contra suas limitações intrínsecas. E sejamos justos: é também um bom exemplo de uma solução inteligente encontrada pela comissão de 1943, mantida até hoje. Abraço. Prof. Moreno