Prezado Doutor: antes de mais nada, gostaria de lhe dar os parabéns pela sua página, uma verdadeira preciosidade entre outras existentes na rede. Minha pergunta se refere aos adjetivos eruditos, ou seja, aqueles que exprimem a idéia de “relativo a” (como bovino, “relativo a boi”; áureo, “relativo a ouro”; etc.). Existe uma regra para formá-los? Caso exista, qual é? Seria, como a formação dos superlativos eruditos, usando o radical latino? Qual é o adjetivo erudito de lhama ou alpaca? Na frase “Casacos de pele de lhama são raros no Brasil”, como preencheríamos a lacuna “Casacos de pele _____ são raros no Brasil”?
Fernando L. S.
Meu caro Fernando: como muito bem intuíste, os chamados adjetivos eruditos foram formados tardiamente em nosso idioma, a partir dos radicais do Latim Clássico. Esse é um dos capítulos mais interessantes (e afortunados!) da história do Português; nossa língua veio do Latim em duas etapas distintas, que passo a explicar.
1. A base do nosso léxico é formada por vocábulos latinos que, com as modificações de séculos de uso, somadas à influência dos substratos lingüísticos existentes na Península Ibérica antes da invasão romana, evoluíram até tomar a forma que hoje têm. Assim como uma brilhante moeda de cobre, recém-cunhada, vai perdendo o brilho e a efígie, e vai ficando mais fina e sem a serrilha das bordas, sob a ação do tempo e do uso, assim palavras latinas como insula, pluvia ou hibernus foram sofrendo também essa erosão do tempo e do uso, resultando nos vocábulos ilha, chuva e inverno, respectivamente. Esses vocábulos, por sua vez, começam a produzir derivados, já dentro dos processos habituais do Português (ilhéu, ilhado; chuveiro, chuvoso, chuvarada; invernada, invernia), e vão continuar produzindo enquanto a nossa for uma língua viva.
2. Devo lembrar que, até o Renascimento, os tratados de Ciência, de Filosofia e de Teologia só eram escritos em Latim, usando-se as línguas modernas (o Francês, o Português, o Espanhol) apenas para poesia, narrativas de viagens e, é óbvio, para as comunicações e os registros indispensáveis à vida quotidiana. Nos séculos XV e XVI, no entanto, começam a ser escritos os primeiros tratados em “vulgar” (assim os eruditos classificavam a língua nacional de cada país), o que trouxe duas conseqüências importantíssimas: em primeiro lugar, permitiu a todo cidadão alfabetizado o acesso a um saber que antes era privilégio dos latinistas; em segundo lugar, obrigou as línguas modernas a ampliarem consideravalmente o seu vocabulário, a fim de poder exprimir as idéias que antes só eram expressas em Latim. É o caso dos adjetivos eruditos: nossos escritores humanistas, ao formá-los, utilizaram os radicais latinos na sua forma original, criando-se os curiosos (mas enriquecedores) pares formados por uma palavra já evoluída e uma palavra reconstituída. É assim que do Latim auru veio a se formar ouro (forma evoluída) e, no Renascimento, áureo (forma reconstituída); capillu deu cabelo e capilar; oculu deu olho e ocular; pater deu pai e paterno. (Veja mais exemplos em dublês). Voltando à nossa imagem da moeda de cobre: é como se surgisse, além daquela moeda gasta pelo tempo, outro exemplar, novinho em folha, trazido de um tesouro fechado por séculos — e as duas agora passassem a circular lado a lado. Nossa dívida para com nossa mãe latina fica, assim, duplicada.
3. Ora – e aqui é que bate o ponto! -, uma língua morta como o Latim tem seu léxico restrito à realidade que era conhecida pelos seus derradeiros falantes. Na Idade Média o Latim já era língua morta; no Renascimento, mais do que morta. Quando a América ficou conhecida – e, com ela, a lhama, a alpaca, a anta, o chocolate, o caju, a capivara e outros que tais -, o léxico latino já estava encerrado. Portanto, não pode haver adjetivo erudito relativo à lhama pelo simples fato de não existir esse radical no Latim. E cá para nós: não faz a menor falta. Nosso idioma ainda não sentiu a necessidade de criar um vocábulo para isso. Um casaco de pêlo de lhama é … um casaco de pêlo de lhama — ao menos por enquanto. Abraço. Prof. Moreno
Depois do Acordo:
lingüísticos > linguísticos
conseqüências > consequências
pêlo > pelo