Uma leitora ficou inconformada com a manchete que encontrou em um grande jornal paulista: “Fulana de Tal foi o quinto juiz suspenso este mês pela Comissão de Arbitragem”. Segundo ela, o jornal demonstrou uma indisfarçável atitude machista ao empregar juiz em vez do consagrado feminino juíza. “O senhor não concorda que a gramática do Português tem um viés claramente sexista? Na escola eu nunca me conformei com a regra que nos obriga a dizer que “o menino, sua mãe, sua tia e suas três irmãs foram convidados para o jantar” — em que um simples vocábulo masculino tem muito mais força gramatical que todos os vocábulos femininos reunidos! Qual o problema de usar convidadas? Por acaso o menino, com isso, sofreria algum tipo de humilhação? E alguém se preocupa com a humilhação das mulheres, neste caso? Em pleno séc. XXI, não deveríamos eliminar de nosso idioma esses resquícios patriarcais, contribuindo assim para derrotar a ideologia de desvalorização da mulher?”.
Minha cara leitora, não me leves a mal, mas vou discordar integralmente do que dizes — com todo o respeito. Primeiro, nossa gramática não tem o “viés” (palavrinha da moda…) sexista que lhe atribuis; segundo, é impossível mudar essas regras; terceiro, mudanças introduzidas na linguagem não têm o poder de alterar a realidade objetiva; quarto e último, o jornal estava corretíssimo ao usar juiz, e não juíza. Vamos por partes. Em primeiro lugar, essa “supremacia” do masculino que nos leva a usar convidados, e não convidadas, na tua frase (e que faz o dicionário registrar os substantivos no masculino singular — aluno, lobo, prefeito) — essa supremacia, repito, é ilusão. Mattoso Câmara Jr. fez, nos anos 60, a descrição definitiva do sistema de gênero e número de nossos substantivos e adjetivos: o plural é marcado por S, enquanto o singular se assinala pela ausência desse S; a marca do feminino é o A, enquanto o masculino se assinala pela ausência desse A. Sabemos que aluna, mestra e professora são femininos porque ali está a marca; inversamente, sabemos que aluno, mestre e professor são masculinos porque ali não está a marca. Por isso, quando quisermos ser genéricos, podemos usar o singular, masculino (ou seja, o número e o gênero não-marcados): “O brasileiro trabalha mais do que o inglês” (entenda-se: “todos”) — e por esse mesmo motivo o dicionário assim registra os substantivos. Paradoxalmente, o gênero que exclui é o feminino: se dissermos que o aumento vai ser estendido aos aposentados, homens e mulheres estão incluídos; se for, porém, estendido às aposentadas, os homens estão fora. Se o jornal escrevesse que “Fulana de Tal foi a quinta juíza afastada do cargo”, estaria afirmando que, além dela, quatro outras juízas tinham sido afastadas. Como esse não foi o caso – os quatro suspensos antes dela eram homens -, o jornal teve de usar juiz, que engloba o masculino e o feminino.
As mulheres não devem sentir-se humilhadas por isso; é assim que funciona o nosso idioma. Por que afirmo que essas regras não podem ser mudadas por uma decisão política ou ideológica? Porque, diferentemente das leis que regem um país, das regras do futebol, da convenção de nosso condomínio ou do nosso sistema de acentuação e de ortografia — que são regras de superestrutura, criadas por nós e, ipso facto, modificáveis por nós —, as regras morfológicas e sintáticas do Português estão no nível estrutural, muito mais profundo, evoluindo ao longo dos séculos num ritmo e numa direção sobre os quais não temos o menor controle.
Por fim, estimada leitora, aconselho-te a abandonar essa esperança de que seja possível mudar a realidade apenas pela introdução de alterações na linguagem. Esta crença ingênua (e onipotente) esteve muito em voga nos anos 70, dando origem, inclusive, ao equivocado movimento do politicamente correto. Muitas feministas pós-Woodstock acreditavam que podiam resgatar (que verbozinho enjoativo!) a dignidade da mulher forçando na linguagem a visibilidade do gênero feminino. Se o vocábulo tinha dois gêneros, os dois deveriam aparecer na frase. Até bem pouco tempo, uma ONG brasileira fazia questão de escrever “os eleitores e as eleitoras votaram”, “os participantes e as participantes receberão”… Felizmente esta tendência está agonizante, e qualquer pessoa culta, quando escreve “Para o bem de seus filhos, os brasileiros deveriam escolher melhor os candidatos em que votam”, sabe que está dizendo “Para o bem de seus filhos (não importa o gênero), os brasileiros (não importa o gênero) deveriam escolher melhor os candidatos (não importa o gênero) em que votam”. Agora, imagina só se eu vou ter a coragem de escrever “Para o bem de seus filhos e de suas filhas, os brasileiros e as brasileiras deveriam escolher melhor os candidatos e as candidatas em que votam”. Que espanto sentiriam os meus leitores e as minhas leitoras!
[2ª parte]
Na coluna anterior, procurei demonstrar que não há nenhuma discriminação sexista nas regras de concordância nominal de nosso idioma, ao contrário do que apregoam certos grupos que lutam pelo reconhecimento dos direitos da mulher. Repito: uma expressão como meus amigos sempre terá dois valores — um, mais restrito, que se refere apenas aos amigos homens; outro, mais genérico, que funciona como uma espécie de neutro, designando tanto os amigos masculinos quanto os femininos. Por que isso? Porque o masculino é o gênero não-marcado, inclusivo, enquanto o feminino é um gênero naturalmente excludente; ao falar de minhas amigas, falo das mulheres, e apenas delas. Não é, pois, uma mera atitude que possamos mudar de acordo com nossa vontade; trata-se, isso sim, da maneira como a língua se estruturou ao longo de sua formação, e não vai ser alterada pela decisão de um grupo, por mais numeroso que seja.
Ora, como isso contraria frontalmente algumas palavras de ordem que ainda são levadas a sério em nosso meio, diversos leitores escreveram para discordar do que afirmei. Dois deles tentaram ao menos entabular uma discussão teórica sobre o assunto, honestamente interessados em me convencer do seu ponto de vista; eu os respeito por isso, embora seus argumentos fossem mais emocionais e políticos do que lingüísticos. Os outros descambaram para o ataque pessoal, dizendo de mim o que Maomé não disse do toucinho — machista, retrógrado e machista retrógrado foi o mínimo com que mimosearam este seu criado. A estes já vou avisando que aqui essa tática não pega; não tenho medo de rótulos, e não vou deixar que o conhecimento científico recue diante de patrulhadores que elevam o tom de voz para esconder a falta de estudo.
O principal defeito de seu raciocínio é confundir (1) a relação masculino-feminino do sistema morfológico do Português, que é imutável, com (2) a recusa que certos setores da sociedade ainda têm de usar os femininos de cargos e funções — esta sim, uma atitude censurável e que pode (e deve) ser reformada em pouco tempo. No primeiro caso, o uso do masculino como forma abrangente é indispensável para o funcionamento de uma língua como a nossa, em que o artigo, o numeral, o pronome, o adjetivo e o particípio concordam em gênero com o substantivo que acompanham. Se a cada masculino acrescentássemos a forma feminina correspondente, deixaríamos de falar o Português e passaríamos a nos comunicar numa algaravia repleta de ecos intermináveis. Asseguro aos defensores da “inclusão lingüística” que uma frase do tipo “os dez cantores premiados serão reunidos no auditório, onde os admiradores poderão fotografá-los” fará muitíssimo menos dano que algo impronunciável como “os cantores premiados e as cantoras premiadas, num total de dez, serão reunidos e reunidas no auditório, onde os admiradores e as admiradoras poderão fotografar a eles e a elas“, frase tão repetitiva e prolixa que lá pela metade já esquecemos do que ela está falando.
Coisa bem diferente é a forte resistência que ainda existe em usar a flexão feminina naqueles cargos e postos que, durante séculos, foram ocupados exclusivamente por homens. Quem acompanhou a ascensão política e profissional da mulher nos últimos trinta anos viu a lentidão com que a mídia foi adotando formas femininas que hoje se tornaram indispensáveis: primeira-ministra, senadora, governadora, deputada, prefeita, vereadora, juíza, promotora, entre tantas. O mecanismo da língua prevê esses femininos, mas seu emprego era praticamente nulo devido ao escasso número de mulheres que conseguiam vencer as limitações que lhes eram impostas. Aqui o problema é realmente de natureza ideológica e pode ser solucionado por uma mudança de atitude. O ingênuo e bondoso Exército da Salvação, por exemplo, há muito utiliza os femininos soldada, sargenta, capitã, coronela e generala, que as Forças Armadas ainda relutam em adotar — por enquanto. O Francês, quanto a isso, é surpreendemente mais rígido, como denuncia Marianne Yaguello, e lá os movimentos feministas enfrentam um osso duro de roer: apesar de existir a flexão feminina, grande parte das profissões de prestígio ainda são utilizadas exclusivamente no masculino: “Mme. X est chirurgien” (“cirurgião”), “Il est amoureux de son chirurgien” (“ele está apaixonado por seu cirurgião” – mesmo que se trate de uma mulher!). Como se pode ver, é a língua que sofre a influência da evolução social (dentro, é claro, dos limites fixados por sua estrutura) — e não o contrário, como querem. Ela não pode preceder e forçar a evolução das mentalidades.
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