Prezado Professor: a cidade de Haia é precedida de artigo em alguns idiomas que pesquisei —The Hague (Ing.), La Haya (Esp.), La Haye (Fr.). Aqui, no entanto, está mais do que consagrado entre nós o uso desse nome SEM o artigo; todos diriam que Rui Barbosa é o “Águia DE Haia“, não o “Águia DA Haia“. Aborrece-me, na verdade, que alguns “descobridores da pólvora” apontem o dedo em riste e asseverem, inflexíveis, que o correto seria A HAIA. Embora os despreze, indago: há uma forma “mais certa” ou outra “menos certa”?
Luiz Fernando S. R. – Petrópolis (RJ)
Todos os que me lêem sabem o quanto custa, às vezes, encontrar o termo preciso, o mot juste dos franceses, a palavra que diz exatamente o que pretendemos dizer. Ora, assim como os personagens refinados da literatura jamais perguntam qual a classe social do herói que lhes salvou a vida, nós também não haveremos de hostilizar um desses vocábulos insubstituíveis, precisos e certeiros só porque ele pertence a uma faixa menos asseada de nossa linguagem. Não conheço melhor exemplo do que caga-regras, rótulo perfeito para essas aves intrometidas que volta e meia aparecem para dar suas bicadas em nosso idioma, deixando para nós, que somos do ramo, o trabalho de limpar a sujeira que fizeram. O Aurélio define o caga-regras como “pessoa que se julga sabichã, a dona da verdade”; o Houaiss, como “aquele que se julga melhor que os outros ou superior a eles e impõe ou quer impor sua vontade sem ter competência ou autoridade para tanto” (como o prezado leitor terá notado, a diferença de qualidade entre os dois dicionários é constrangedora).
Faço esse comentário porque nosso amigo Luz Fernando, ao que parece, anda sofrendo o assédio dessas incômodas caturritas que andam revoando por aí, apregoando a novidade de que o nome da cidade holandesa em que Rui Barbosa brilhou seria a Haia, e não Haia, simplesmente, como nós, os tolos, acreditávamos. “Embora os despreze”! Gostei de ver, Luiz Fernando! Essa é a atitude correta para com esses profetas recém-chegados, que pensam (no seu delírio) ter sido enviados aqui embaixo para reescrever a história e a tradição de nossa língua.
Para começar, não é possível definir, com rigor, quando se usará (ou não) o artigo antes dos nomes de lugar. Nós, no Brasil, dizemos na França, na África, enquanto nossos irmãos de além-mar preferem em França, em África. No corpo do mesmo poema, Camões ora usa Espanha com artigo, ora sem: “Somente sei que é gente lá de Espanha” e “Um Rei, por nome Afonso, foi na Espanha”. O padre Vieira, o Imperador da Língua, tanto escreve “tenho visto a Companhia em todas as cinco Assistências dela: na de Portugal, na de Espanha, na de França, na de Alemanha, e na de Itália”, quanto “os príncipes da Itália”, “os portos da França”, “setenta mil soldados da Alemanha”. Aqui mesmo há uma velhíssima pendenga entre os que dizem em Recife e os que defendem no Recife – e os dois lados têm lá sua razão. “Certo” e “errado”, aqui, são conceitos temerários. Tudo vai depender do momento histórico, da região, dos hábitos consagrados pela língua culta.
No caso de Haia, há uma nítida indecisão histórica. Até o séc. XIX nota-se uma preferência (especialmente nos autores portugueses) por a Haia – embora Francisco Manuel de Melo e Rocha Pita usem o nome sem artigo. Eça e Machado ainda preferem a Haia, mas Fialho de Almeida ora usa o artigo, ora o dispensa. No séc. XX, no entanto, a preferência por Haia, sem artigo, é esmagadora e revela o que se chama, em Lingüística, de “direção de tendência”. Uma simples passeada pelo Google encontrou mais de 250.000 ocorrências para Tribunal de Haia contra 50.000 para Tribunal da Haia; mais de 300.000 para Corte Internacional de Haia contra 60 (seis dezenas!) para Corte Internacional da Haia; 950.000 para Convenção de Haia contra 140.000 para Convenção da Haia; finalmente – e impressionante! – mais de um milhão para Águia de Haia contra 33 (a idade de Cristo!) para Águia da Haia… Um milhão contra trinta e três! Ainda bem! Se fosse chamado de Águia DA Haia, Rui Barbosa começaria a dar voltas no túmulo como uma piorra!
Esses dados nos permitem afirmar, sem hesitação, que pouco a pouco vai diminuindo o número daqueles que acham necessário o artigo antes do nome desta cidade. Não podemos dizer que eles estejam errados, é claro – mas hoje a forma preferível é SEM o artigo. É completamente despropositado que uma minoria em extinção procure condenar aquilo que a maioria culta já decidiu há muito tempo. Ah, outra coisa: lembro que, nesses casos, a posição que adotarmos quanto ao artigo vai naturalmente ter seus reflexos na crase. Quem não usa artigo vai a França, a África, a Haia; quem o usa, vai à França, à África e à Haia.
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